domingo, 14 de dezembro de 2014

“Comum” latino-americano em matéria de proteção de direitos humanos

Por Jânia Maria Lopes Saldanha
No dia de hoje e de amanhã a cidade mexicana de Vera Cruz viverá um momento histórico. É a cidade sede da XXIV Conferência Ibero-americana[2] na qual estarão reunidos representantes dos 22 países membros e de inúmeros setores e organismos da sociedade civil, como indica a composição dos foros e encontros que serão realizados para debater as mais variadas temáticas.
O Presidente mexicano Enrique Peña-Nieto manifestou-se no dia de ontem, em alguns periódicos internacionais[3], sobre essa importante Conferência que terá como tema “Educação, Inovação e Cultura”.
Peña-Nieto finalizou sua manifestação repetindo as palavras pronunciadas pelo então Rei Juan Carlos de Espanha na Primeira Conferência realizada em 1991 na cidade de Guadalajara quando destacou que “por cima das nossas preocupações nacionais, desponta um sentimento comum que todos partilhamos: a vontade de trabalhar juntos pelo bem-estar e prosperidade dos nossos povos.”
Considerando essa manifestação, o Presidente do México destacou que a Cimeira de Vera Cruz viabilizará que a região da Ibero-américa consolide-se como uma região inclusiva e que “privilegie a formação integral das novas gerações.”
Feitos esses registros iniciais vale a pena pensar na relação que existe entre: a)  o tema da XXIV Conferência – educação, inovação e cultura ; b)  as palavras de Peña-Nieto que repetem as do então Rei de Espanha – sentimento comum de que todos partilhamos – e as suas próprias – que a Ibero-américa seja uma região inclusiva e que privilegie a formação integral das novas gerações; c) os recentes episódios de violência experimentados pela sociedade mexicana e; d) a possibilidade de construção de um direito “comum” constitucional e convencional na América Latina.
De fato, o trágico e ainda não completamente esclarecido episódio que resultou no desaparecimento de 43 jovens no Estado de Guerrero, no México e que aponta como principal responsável as forças policiais desse País, é apenas a ponta do iceberg cuja substância é composta basicamente da relação entre o crime organizado transnacional, a exclusão social, a conivência dos agentes políticos e das instituições públicas e o histórico quadro de violações de direitos humanos presente no México quanto também em grande parte dos países do continente americano.
mexicoEvidentemente, os registros de violência que envolvem assassinatos em massa e desaparecimentos forçados que têm devastado a sociedade mexicana em alguns lugares não correspondem à notória generosidade e ao comprometimento com o respeito aos direitos humanos que podem ser tributados ao povo mexicano. Prova disso são as manifestações populares que se espalharam por todo o País após o crime de Guerrero clamando por medidas governamentais efetivas para encontrar as vítimas, responsabilizar os autores e para evitar que fatos de tal natureza sejam repetidos.
Entretanto, por conta dessa trágica realidade que coloca o México no grupo de Estados que agasalha a prática de crimes contra a humanidade é que a FIDH – Federação internacional dos direitos humanos[4] em conjunto com a Comissión mexicana de promoción e defensa de los derechos humanos e outras instituições de defesa de direitos humanos apresentou no mês de setembro de 2014 comunicado ao Procurador Geral do Tribunal Penal Internacional relativo à prática de tais tipos de crimes relativos ao período de 2006 a 2012.
Assim, o silêncio em fazer referência a essa cruel realidade, tal como se observa na manifestação do Presidente mexicano, colide com o reconhecimento que ao mesmo tempo ele faz acerca “do sentimento comum de que todos partilhamos para a formação integral das novas gerações”. Assim, embora o México seja signatário da Convenção interamericana de direitos humanos e sua Constituição[5] preveja no art. 1º a proteção integral dos direitos humanos, há reconhecidamente uma forte e permanente violação desses direitos.
O caso mexicano, um entre tantos outros conhecidos e de natureza similar ocorridos na América Latina é trazido nesse momento em consideração à sua atualidade e à sua repercussão internacional. Serve ele, assim, para convidar o leitor a pensar na ambivalência entre as práticas políticas de Estados democráticos que violam os direitos humanos e o quadro normativo protetivo desses mesmos direitos. Afinal, a pergunta que não quer calar é: qual é o papel do direito?
Parece ser possível encontrar algumas respostas para entender as situações complexas e persistentes de violações de direitos humanos em nosso continente, quanto também para buscar soluções, a partir da compreensão da noção de “comum”.
“Comum” entendido não a partir da teoria dos “bens comuns mundiais” ainda em muito associada aos interesses econômicos, justamente porque o discurso mobilizado em torno desses bens, ocorrido na década de 90 do Século passado, nasceu junto aos pensadores da ciência econômica. Por outro lado, tampouco   deve ser associado à noção de “patrimônio comum da humanidade”, em razão da dependência dessa categorização às declarações de direitos. O “comum”, então, compreendido como um princípio político que anima tanto a atividade coletiva dos indivíduos na construção da riqueza da vida e da democracia, quanto a capacidade de exercer o autogoverno no exercício dessa atividade.
Como afirmam Dardot e Laval[6] um verdadeiro conceito de “comum” somente pode ser produto de uma práxis política e, assim, compor-se de um processo instituinte, ou seja, o “comum” encontra sua origem não em “objetos ou condições metafísicas, mas somente na atividade”. Desse modo, os movimentos sociais contrários à violação de direitos humanos, praticadas diretamente pelos Estados ou com a sua conivência, representam uma viva experiência do princípio político do “comum”. O movimento nas “praças”, a primavera árabe, as lutas estudantis, as mobilizações populares em defesa do acesso aos recursos naturais, o movimento dos indignados na Espanha ou os acampamentos em Wall Street são esboços dessas práxis.
Resta saber, enfim, em que medida os movimentos sociais impactam os centros decisórios de modo a pressioná-los a tomar medidas concretas capazes de transformar a realidade concernente à violação de direitos humanos. Irá o Procurador do Tribunal Penal Internacional acolher a comunicação feita pelas organizações representativas da sociedade contra autoridades mexicanas? Avançará o governo em suas até agora débeis proposições[7] para reduzir, senão debelar as violações de direitos humanos no México e, concretizar o “sentimento” comum para a formação integral das novas gerações?
É preciso reconhecer, finalmente, que o direito constitucional latino-americano apresenta um quadro que, segundo Armyn Von Bogdandy[8], é capaz de envolver a noção de “comum” ancorada no surgimento de um novo direito público na região e que faz a síntese entre as velhas tensões entre o plano nacional e o internacional. Mas mais do que isso, esse direito constitucional “comum” se inspira em três princípios: a) direitos humanos; b) Estado de direito e; c) democracia. Bogdandy chama a atenção para o fato de o direito não dever ser entendido apenas como expressão de poder e sim como capacidade emancipadora. Desse modo, como se sabe, as estruturas e o espaço estatal não são mais suficientes. O reconhecimento do direito constitucional “comum” latino americano, segundo o autor referido, não dispensa o Estado pelo contrário, mas requer dele uma abertura ao internacional e aos marcos normativos protetivos de direitos humanos.
Para o que interessa à proposição deste ensaio, vale chamar a atenção para um dos elementos marcantes desse ius constitucional commune latino americano: a inclusão de todos aos grandes sistemas sociais protetivos, como educação, saúde, trabalho, seguridade, com vistas a combater e reduzir toda forma de exclusão.  Tal compreensão permite então, fazer o encontro dessa teoria jurídica do “comum” constitucional – e para nós, também, do comum convencional – latino-americano em matéria de proteção de direitos humanos com o “princípio político do comum” que é tanto atividade quanto capacidade de auto-organização da própria sociedade.
Será mesmo possível acreditar que a XXIV Conferência Ibero-americana produzirá elementos concretos que comprometam os Estados, mais ainda, a reconhecer, respeitar e promover a existência de um direito “comum” constitucional e convencional na América Latina, cujo farol iluminador seja a formação integral das novas gerações a fim de evitar a produção de “vidas desperdiçadas”.[9]
Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.

[2] Disponível em http://www.24cumbreiberoamericana.gob.mx/.
[3] Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/12/1558487-enrique-pena-nieto-ibero-america-nova-pagina-na-sua-historia.shtml e http://www.publico.pt/mundo/noticia/iberoamerica-escrevendo-uma-nova-pagina-na-nossa-historia-comum-1678616?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+PublicoRSS+(Publico.pt).
[4] Disponível em http://www.ldh-france.org/violences-au-mexique-ldh-fidh-interpellent-gouvernement-francais/
[5] Disponível em: http://www.ordenjuridico.gob.mx/Constitucion/cn16.pdf
[6] DARDOT, P. LAVAL, C. Commun. Essai sur la sur la Révolution au XXiéme siècle. Paris: La Découverte, 2014
[7] A crítica é apresenta pela Comissão mexicana de defesa e proteção dos direitos humanos. Disponível em: http://cmdpdh.org/category/comunicados/.
[8] Ius constitutionale commune en America Latina: rasgos, potencialidades e desafios, p. 23-46. Disponível em : http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/7/3271/10.pdf
[9] A expressão é de Zygmunt Bauman.

Le carnet du GEREP - Séminaire de recherche 2014-15

Fonte: http://republique.hypotheses.org/

L’objet de ce séminaire est en premier lieu d’accueillir les explorations auxquelles se livre le GEREP, dont l’objectif est de renforcer la visibilité et la dynamique des théories politiques républicaines et celles portant sur le bien commun, et de lui permettre de développer ses pistes d’interrogations philosophiques dans les meilleures conditions. Néanmoins, il ne s’agit pas d’établir un pré carré républicain ne s’adressant qu’à ses défenseurs les plus convaincus. Ce séminaire cherche au contraire à accueillir les positions les plus diverses pour créer la discussion la plus pertinente et la plus fertile possible des « options républicaines », en s’appuyant sur la diversité des thématiques de recherche des organisateurs (philosophie politique, éthique, théorie du droit, théorie économique, historiographie).
Conformément aux principes qui structurent le GEREP, ce séminaire se veut donc un espace :
  • de discussion dans une optique de recherche universitaire
  • de pluralisme conceptuel, c’est-à-dire le lieu de débats d’idées contradictoires
  • de pluralisme disciplinaire, en ouvrant la discussion à la plus grande diversité possible des approches (philosophie, sciences politiques, sociologie, droit, économie, histoire etc.)
Séance 1 - Biens communs et politiques des communs
Jeudi 11 décembre 2014, 18h-20h
Lieu : Centre Maurice Halbwachs, ENS, 48 bvd Jourdan, 75014 Paris (salle de réunion)
  • Sebastien Broca (Post-doctorant, LabEx SITES/CEPN), « Quelques remarques critiques sur Commun de Pierre Dardot et Christian Laval »
  • Jânia Maria Lopes Saldanha (Professeur de droit, Universidade Federal de Santa Maria de Rio Grande do Sul, Brésil), « Le défi pour construire l’idée du “commun”: Réflexions sur l’effectivité des droits fondamentaux sociaux »
Discutant : Pierre Crétois (ATER en philosophie à l'Université François Rabelais de Tours)
Séance 2 – Républicanisme et cosmopolitisme
Jeudi 5 février 2015, 14h-16h
Lieu : Centre Maurice Halbwachs, ENS, 48 bvd Jourdan, 75014 Paris (salle de réunion)
Intervenants : Marc Bélissa et Valéry Pratt
Discutant : Rémi Clot-Goudard
Séance 3 – La république et la famille
Jeudi 9 avril 2015, 18h-20h
Lieu : Centre Maurice Halbwachs, ENS, 48 bvd Jourdan, 75014 Paris (salle de réunion)
Intervenants : Anne Morvan et Gabrielle Radica
Discutante : Stéphanie Roza
Séance 4 – La république et les mandats en Révolution
Jeudi 11 juin 2015, 18h-20h
Lieu : Centre Maurice Halbwachs, ENS, 48 bvd Jourdan, 75014 Paris (salle de réunion)
Intervenants : Erwan Sommerer et Claude Guillon
Discutante : Stéphanie Roza
Séance 5 – La république et l'éducation
Jeudi 18 juin 2015, 18h-20h
Lieu : Centre Maurice Halbwachs, ENS, 48 bvd Jourdan, 75014 Paris (salle de réunion)
Intervenants : Christophe Miqueu et Edern de Barros
Discutant : Naël Desaldeleer
Comité d’organisation : Thomas Boccon-Gibod, Rémi Clot-Goudard, Pierre Crétois, Edern De Barros, Naël Desaldeleer, Edouard Jourdain, Cédric Rio, Stéphanie Roza.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Constitucionalismo cosmopolita entre muros visíveis e invisíveis

Por Jânia Maria Lopes Saldanha.


O desejo e as práticas segregacionistas derivados da vontade jurídico-político-social de um conjunto de países embora não sejam algo novo, como é sabido, adquiriram ares transnacionais. 
A representação e materialização desse desejo e dessas práticas podem ser comprovados observando-se os “muros” materiais – como, apenas para citar um de tantos exemplos, o que separa os Estados Unidos e México – e imateriais – também à guisa de exemplo, como os dossiês dos passageiros aéreos, o conhecido Passenger Name Record ou accord PNR [1] -fortalecidos e criados sobretudo após a queda das torres gêmeas em Nova York no ano de 2001.
 Ao “oeste” que se impunha ao “leste”- e também o contrário -  com o Muro de Berlin, cujos 25 anos de sua queda foram recentemente festejados, hoje pode-se afirmar que o “norte” impõe os seus muros “ao sul”. 
Porém, não se trata mais de uma luta bipolar entre dois blocos e sim um ethos [2] defensivo que predomina no mundo ocidental metaforicamente expresso pelos citados muros que se constituem, segundo Wendy Brown [3] em expressões máximas da erosão da soberania e da fragilização da democracia.
Tais divisões visíveis e invisíveis estabelecem uma significativa diferença [4] entre a “mundialização feliz” dos países capitalistas ditos avançados e a “mundialização do desastre” dos países pobres, das favelas e das áreas de etiquetadas com o selo da “ilegalidade” e da exclusão.
Esse quadro negativo e criticável expressa, em verdade, a força da intitulada “banalidade securitária” presente nas políticas públicas estatais e não estatais, como também na atuação das empresas privadas.
Wendy Brown aponta que do ponto de vista da psicanálise da sociedade, as práticas securitárias podem ser explicadas a partir de uma “psicanálise da defesa” expressa por uma angústia ao mesmo tempo social e subjetiva que, por exemplo, toma a forma de um certo tipo de “histeria” coletiva que persegue os imigrantes, os que reivindicam asilo e os que não se insiram na condição de turistas com dinheiro, tampouco sejam homens de negócios bem-sucedidos.
Em suma, depois do 11 de Setembro o mundo oscila entre o endurecimento das políticas de segurança e o respeito à democracia e ao Estado de Direito. No mundo pós-nacional [5] e dominado pelo medo do risco, paulatinamente foi normalizada a associação entre a exigência de segurança e a instituição do político.  [6]
Esse cenário complexo expressa a “guerra infinita” [7] ao terror instaurada pós 2001 e mantém um estado permanente de exceção, como reiteradamente tem sido denunciado pelos defensores da democracia e dos direitos humanos.
Por isso, fragiliza-se o exercício das liberdades fundamentais e torna-se opaca a instituição do cosmopolitismo constitucional que, embora as diferentes experiências e construções históricas dos estados constitucionais, pode ser associado, entre outros aspectos, à notável existência de um bloco de constitucionalidade em matéria de proteção de direitos humanos. 
Pode-se assim dizer, por exemplo, que há entre numerosos países, como os da América Latina, uma verdadeira identidade constitucional nesse campo. E no plano mais amplo essa mesma identidade também é aferível como se vê do teor da Carta da ONU, da Declaração Universal de Direitos Humanos e das Convenções de Direitos Humanos que, juntos, seriam o ponto de partida para a defesa do pluralismo e da democracia.
Não obstante isso, no plano global pode-se ver que as Resoluções 1368 e 1373 [8] do Conselho de Segurança da ONU, respectivamente de 12 e 28 de setembro de 2001, fortaleceram a condição do direito de defesa dos Estados no plano das relações internacionais e os conclamaram a ratificar a Convenção sobre financiamento do terrorismo, ao mesmo tempo em que no plano onusiano foi criado o Comitê contra o terrorismo para assegurar assistência técnica aos Estados e a cooperação internacional nessa matéria. Na mesma linha a Resolução 1989/2011 [9] conclama os Estados a sofisticarem suas práticas de defesa antiterror, relembrando, no próprio texto, do teor da Resolução nº 1333/2001 que criou a “Lista Consolidada” de potenciais suspeitos de terrorismo.
Com isso, lança-se um programa mundial de luta contra o terrorismo. Desse modo, se é certo que os crimes transnacionais devem ser combatidos e responsabilizados os culpados, há de ser destacado que as políticas securitárias têm mostrado seu lado perverso na medida em que sua expressão exponencial é a criminalização da intenção e a conversão de pessoas comuns em suspeitos, potenciais terroristas, jogados a esta condição porque inclusos em listas negras elaboradas unilateralmente por serviços secretos dos Estados. [10]
Assim, surgiu no horizonte um novo slogan: o da “guerra ao terror” que demarca um endurecimento das políticas globais e, no plano dos Estados, um recrudescimento dos particularismos locais, situação que desafia a perspectiva também global de respeito aos direitos humanos que interdita a tortura, os tratamentos desumanos e degradantes, os maus tratos e a pena de morte. Em tal perspectiva também há a vedação peremptória de violação das garantias processuais, como a do juiz natural, do acesso à justiça, da ampla defesa, do contraditório e o da defesa por advogado.
O efeito dessas práticas globais no plano interno dos países pode ser identificado em face da criação de marcos normativos que instauram novas formas de penalização como também por um movimento crescente de modificação do direito penal e do processo penal. 
Assim, a linguagem penal muda de sentido na medida em que após a queda das torres gêmeas a distinção entre o direito penal do tempo de paz ao direito penal do tempo de guerra torna-se tênue e ambígua. [11] Essa mudança de rumo permite que se identifique, também, uma transferência dos serviços civis e do sistema de Justiça para os serviços militares. Resta que, nos Estados Unidos, por exemplo, o poder de deter, de analisar a culpabilidade e de pronunciar as penas é, tout court, transferido para comissões militares, invertendo-se a aplicação do princípio da especialidade que autoriza a atuação da “justiça militar” apenas para processar e julgar crimes praticados por elementos das forças armadas, conforme tem sido entendido pela Comissão de Direitos Humanos da ONU e pela jurisprudência dos tribunais regionais de direitos humanos como a da Corte Interamericana e da Corte Africana. [12]
O que é posto em questão é não só se há ou não exacerbação das respostas institucionalizadas diante das simples ameaças, mas também se tais práticas são legítimas à luz de valores constitucionais, convencionais e universais que protegem a dignidade humana.
Mas resta saber quem são as vítimas destas práticas? Quem seriam os “inimigos combatentes ilegais”? No limite, a resposta pode ser buscada no indivíduo hipermoderno chamado por Robert Castel de “individu par défaut [13] isto é, aquele a quem faltam os recursos necessários para estabilizar o presente e para antecipar o futuro, aquele que quer ocupar um lugar, ser considerado mas, que, no entanto, não realiza tais aspirações. 
A risco de errar, por demasia ou insuficiência, nessa condição estão os imigrantes, os refugiados de toda ordem, os consumidores “falhos” como refere Zygmunt Bauman [14] enfim, todos aqueles que mudam de lugar em busca de oportunidades de trabalho e de realização do mínimo de sua humanidade. Porém, amiúde, não têm encontrado ambiente favorável para a realização de tais objetivos, compondo o grupo que mais tem sido fustigado pelas políticas nacionais, regionais e internacionais anti-imigratórias e antiterror. A humanidade, em face desse desenho, deve temer uma barbárie de dupla face: aquela que deriva da união do interior com o exterior. [15]
 
Jânia Maria Lopes Saldanha - Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.
 
Referências: 
[1]  DELMAS-MARTY, Mireille. Libertés et sûreté dans un monde dangereux. Paris: Seuil, 2010, p. 17.
[2] FOESSEL, Michael. État de vigilance. Critique de la banalité sécuritaire. Paris: Le Bord de L’Eau, 2010, p. 10. Também em: Après la fin du monde. Critique de la raison apocalyptique.Paris: Seuil, 2012.
[3] BROWN, Wendy. Les murs de la séparation et le déclin de la souveraineté étatique. Paris: Les Prairies ordinaires, 2009, p. 21.
[4] A diferença é apontada por Michael Foessel.
[5] BECK, U.Un nuevo mundo feliz. La precariedade del trabajo en la era de la globalización.Barcelona: Paidós, 2000, p. 163-164.
[6] FOESSEL, M. État de vigilance. Critique de la banalité sécuritaire, op. cit., p. 14.
[7] FERRAJOLI, Luigi. Garantismo. Una discusión sobre derecho y democracia. Madri: Editorial Trotta, 2009. Também em: Poderes salvages. La crise de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011.
[8] Criou o Comitê contra o terrorismo e exortou todos os Estados que fazem parte da ONU a recusar todas as formas de apoio financeiro aos grupos terroristas e a deixar de proporcionar refúgio seguro, sustento ou apoio a terroristas e a partilhar com outros governos informações sobre qualquer grupo que pratique ou planeje atos terroristas. A Resolução impede a ajuda ativa ou passiva aos terroristas (NAÇÕES UNIDAS, s/d).
[9] Recepcionada no Brasil pelo Decreto 7606 de 17.11.2011.
[10] LAURENS,  Henry. DELMAS-MARTY, Mireille. Terrorismes. Histoire et Droit. Paris: CNRS Editions, 2010, p. 179.
[11] DELMAS-MARTY, Mireille. Libertés et sûreté dans un monde dangereux, op. cit., p. 12 e segs.
[12] GUTIÉRREZ, Juan Carlos. CANTÚ, Silvano. A restrição à jurisdição militar nos sistemas internacionais de proteção de direitos humanos. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos. v. 7. n. 13. Dez. 2010, p. 75-97.
[13] CASTEL Robert. La montée des incertitudes. Travail, Protections statut de l’individu. Paris: Seuil, 2009, p. 434. Significa “indivíduo por falta” cujo contrário é o “indivíduo por excesso” que é a outra marca do mundo contemporâneo, ou seja, aquele que baldado esteja inserido em sociedade, age no seu interesse próprio, exacerbando o individualismo.
[14] BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[15] MORIN, Edgar. Cultura e Barbárie Europeias. Instituto Piaget. p. 33.

Fonte: http://justificando.com/2014/11/24/constitucionalismo-cosmopolita-entre-muros-visiveis-e-invisiveis/

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Os sistemas regionais de proteção de direitos humanos, os direitos sociais e os direitos dos povos

Jânia Maria Lopes Saldanha

Existem três importantes sistemas jurídicos de proteção de direitos humanos de caráter regional: o europeu, o americano e o africano. Cada qual tem por competência central, entre outras, zelar pelo respeito e efetividade das Convenções de direitos humanos firmadas em cada continente. A europeia data de 1950. A americana de 1969. E a africana de 1981.

A Carta africana de direitos humanos, conhecida como Carta de Banjul, traz previsões importantes acerca do dever dos Estados africanos signatários desse texto normativo, de adotar medidas positivas para implementação e efetivação dos direitos sociais a fim de reduzir os conhecidos déficits em matéria social no continente africano. Essa mesma Carta prevê também a proteção dos direitos dos povos. A Convenção europeia para a proteção e salvaguarda dos direitos humanos e a Convenção americana de direitos humanos são, do ponto de vista comparado, mais tímidas do que a africana com relação à previsão dos direitos sociais e são omissas no que concerne aos direitos dos povos.

Assim, a Carta de Banjul reúne dispositivos que tratam especificamente de direitos sociais, que pertencem às pessoas mas que possuem natureza coletiva, como o direito ao trabalho, à saúde e à educação.

Quanto ao direito ao trabalho ela o estabelece para toda e qualquer pessoa em condições “equitativas” e “satisfatórias”. Prevê, ainda, salário igual para trabalho igual. A Convenção americana não apresenta texto específico relativo ao trabalho. Porém, no art. 26, prevê ser dever dos Estados adotar medidas internas e empreender cooperação internacional, a fim de efetivar direitos que decorrem das normas econômicas, sociais e sobre educação, ciência e cultura. Sobre o direito ao trabalho a Convenção europeia não traz nenhuma previsão específica.

O direito ao gozo do melhor estado de saúde física e mental é reconhecido no art. 16 do texto africano que, ao mesmo tempo, compromete os Estados a adotar medidas necessárias para proteger a saúde das populações e prestar-lhes assistência médica. Exceto a previsão do artigo 26 da Convenção americana, não há qualquer referência ao direito à saúde. A ausência também marca a Convenção europeia.

O direito de toda pessoa à educação e a tomar parte da vida cultural da comunidade, bem como o dever do Estado de promover e proteger os valores tradicionais reconhecidos pela comunidade, estão previstos no art. 17 da Convenção africana, registro que destaca não só a importância da educação, mas que ela não está desvinculada da noção de comunidade, forte referência da cultura daquele continente. Mais uma vez percebe-se a ausência de dispositivo específico desse direito no documento americano. Entretanto, a Convenção americana contém um conjunto de direitos relacionados ao comprometimento dos Estados em implementar o desenvolvimento progressivo, tal como prevê o art. 26. O Protocolo adicional à Convenção europeia, em seu art. 2º, traz a garantia do direito à instrução como uma assunção que deve ser efetivada pelo Estado, sem exclusão de qualquer pessoa e com respeito às convicções religiosas e políticas de cada família.



Porém, a grande novidade contida na Carta africana comparativamente às Convenções europeia e americana, é a previsão de proteção do direito dos povos. O art. 19 pode ser compreendido como um dispositivo geral que garante a igualdade entre os povos, assegurando-lhes a mesma dignidade e os mesmos direitos, ao mesmo tempo em que rechaça qualquer dominação de um povo sobre o outro.

Há direito dos povos vinculados à perspectiva individual. O primeiro é o direito à existência e à autodeterminação previsão essa derivada, pode-se afirmar, da realidade cultural, das tradições dos povos da África e dos processos de colonização a que foram largamente submetidos os Países desse continente. O direito à autodeterminação é qualificado como inalienável e imprescritível e o farol que assegura a escolha do estatuto político, o desenvolvimento econômico e social.

Por outro lado, o direito à livre disposição das riquezas e dos recursos naturais previsto no art. 21 determina que tais direitos são exercidos no interesse exclusivo das populações e que nenhum povo pode deles ser privado. Quando isso acontecer e representar espoliação, os povos africanos têm o direito de recuperá-los e de buscar a indenização devida.

Vinculados à perspectiva coletiva estão o direito ao desenvolvimento econômico e social e cultural, o direito à paz e à segurança. Entretanto, a Carta de Banjul vincula esses direitos ao gozo do patrimônio comum da humanidade. Ora, é sabido que a persistente desigualdade entre as relações norte-sul do planeta repercutiu na aceitação da existência de um “patrimônio comum da humanidade”, conceito ainda muito controvertido, cuja reflexão aprofundada os limites deste ensaio não permitem seja realizada. Também o art. 24 estabelece terem os povos direito ao meio ambiente satisfatório, como condição do desenvolvimento. A promoção do ensino, da educação e a difusão dos direitos e liberdades contidos na Carta consistem, de igual modo, em direito dos povos. E, por fim, dada a importância do sistema de justiça protetivo dos direitos humanos, a Carta de Banjul, impõe aos Estados Partes a obrigação de salvaguardar a independência dos tribunais, como também a de promover o aperfeiçoamento das instituições nacionais que tenham por objetivo a proteção dos direitos e liberdades previstos no texto africano.

Caro leitor. Todo esse percurso foi necessário, primeiro, para brevemente mostrar as especificidades da Carta africana no que diz respeito aos direitos mencionados, embora seja ela a mais nova dentre as três, ainda que não se desconheça as graves violações de direitos humanos – transformados em meras caricaturas – que ocorre no continente africano e que denuncia a fragilidade persistente na aplicação da Convenção e na efetividade do sistema de justiça regional.

Mas gostaria de chamar a atenção, em segundo lugar, para a realidade da nossa Corte regional no que se refere ao trato de violações de direitos sociais, conquanto o texto da Convenção americana não seja tão rico em previsões sobre eles. De fato, esse parece ser, hoje, o grande desafio para o sistema regional protetivo de direitos humanos, especialmente o da Corte Interamericana neste Século XXI.

Com efeito, é preciso olhar para as realidades nacionais dos países da América Latina para perceber as dívidas estatais em matéria de concretização dos direitos sociais, embora estejam eles previstos em maior ou menor medida em inúmeros textos constitucionais. As violações persistentes dos direitos sociais não demandarão muito tempo para que sejam denunciadas ao sistema de justiça regional o que possivelmente desaguará em pronunciamentos diretos da Corte sobre a matéria. É que, em geral, quando ela reconhece a violação de um direito de natureza social o faz apenas como consequência da violação de um direito individual.

A falta de um catálogo de direitos sociais nos moldes do africano impediria a CIDH de agir? Há dificuldades para dar resposta segura a esse questionamento, razão pela qual é preciso refletir, quiçá, sobre a necessidade de mudança da Convenção americana. A outra, cuja análise será realizada em outro ensaio, é o problema da margem nacional de apreciação, ou seja, o quanto deverá ser deixado para os Estados decidirem em matéria de direitos sociais tendo em vista que devem estar conectados com a sua realidade cultural, econômica, política e social.

Entretanto, a evolução da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos se ainda não é a ideal, evidencia bem o particularismo[1] que caracteriza sua atuação, na medida em que para decidir leva em conta a realidade latino-americana, especialmente no que diz com a vulnerabilidade jurídica, política e social dos indivíduos. O desafio, pois, é não só o de orientar a atuação dos Estados na solução de casos concretos e o de influenciá-los na formulação de políticas públicas de combate à desigualdade estrutural que caracteriza as sociedades latino-americanas mas, antes, o de “harmonizar” a efetivação dos direitos sociais na região.

Trabalho dessa natureza – e exigência – não seria propriamente uma novidade pois ao longo de seus anos de atuação, o sistema de justiça regional de proteção de direitos humanos tem impactado os sistemas jurídico-políticos internos, cuja consequência mais significativa é a adoção de posturas menos reticentes e mais propositivas dos Estados, como lembra Víctor Abramovich. Tal conduta significa não só o reconhecimento dos direitos humanos quanto sua atitude política – que deve estar baseada em princípios - em defesa de sua efetivação. Fundamentalmente, o que se exigirá da CIDH é um aprimoramento de sua concepção de igualdade marcada pela evolução de um conceito de igualdade formal para um conceito de igualdade material, mínima exigência quando o que se põe como problemática fundamental é a desigualdade estrutural.

A recente publicação do acórdão relativo à ADPF 186, julgada pelo STF em 2012, ocasião em que julgou constitucional a adoção das políticas de ações afirmativas pelas Universidades brasileiras, matéria essa posteriormente legislada no Brasil, aqui tomada apenas como um de tantos exemplos possíveis, indica a permeabilidade do sistema de justiça e do sistema legislativo à internacionalização também dos direitos sociais, como é o caso do direito à educação.

Por fim, embora deva ser reconhecida a extrema timidez da jurisprudência da Corte africana de direitos humanos, cuja atuação é relativamente recente, algo se passa de maneira um pouco diferente com a atuação da Comissão africana de direitos humanos, órgão esse que já teve oportunidade de manifestar-se[2], inclusive, sobre o direito dos povos. Por isso há algo a aprender. Lançar mão da “hermenêutica diatópica” de que trata Boaventura de Sousa Santos, pode ser um dos caminhos teóricos possíveis para dar lugar aos direitos sociais e ao direito dos povos no sistema regional de proteção de direitos humanos na América Latina.


Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.


[1]Sobre esse particularismo verificar: HANNEBEL, Ludovic. La Cour Interamericaine de droits de l’homme: Entre particularieme et universalisme. HANNEBEL, Ludovic et Hélène TIGROUDJA (Dir.). Le particularisme interamericaine des droits de l’homme. En l’honneur du 40e anniversaire de la Convention américaine des droits de l’homme. Paris: Pedone, 2009.
[2] Por exemplo nos seguintes casos: Caso: 266/03 Kevin Mgwanga Gunme et al / Cameroun(julgado em 27 de maio de 2009). Disponível em: http://www.achpr.org/communications/decision/266.03/. Caso: 276/03 Centre for Minority Rights Development (Kenya) et Minority Rights Group (pour le compte d’Endorois Welfare Council) / Kenya (julgado em 25 de novembro de 2009). Disponível em: Disponível em: http://www.achpr.org/fr/communications/decision/276.03/.


Fonte: http://justificando.com/2014/11/10/os-sistemas-regionais-de-protecao-de-direitos-humanos-os-direitos-sociais-e-os-direitos-dos-povos/

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A “condenação ao contato” para consolidar os direitos humanos

Por Jânia Maria Lopes Saldanha


A perspicácia sensível de Nietzsche[1]identificou o Século XIX como a “era da comparação”. Ele afirmou que a interpenetração de homens e a polifonia de esforços para se colocar em contato representava verdadeira oposição ao isolamento e ao fechamento das sociedade nacionais.

Exercer o comparatismo e adotar o ponto de vista do “outro” traduz uma experiência singular, ocasião em que seu autor universaliza-se na medida em que se abre ao aprendizado de encontrar respostas em ordenamento jurídico que não é o seu. E o “contato” pode derivar da experiência do diálogo.

No mundo do direito, tal diálogo pode ser identificado nas conversações e citações jurisprudenciais recíprocas que são praticadas entre os mais diversos sistemas de justiça nacionais e não nacionais, como também entre esses sistemas e outros atores que atuam no vasto cenário das relações internacionais. A permeabilidade ao “exterior” é, sem dúvida, resultado das trocas globais e da facilitação das comunicações.

Não é novidade, pois, que os processos judiciais que tramitam em jurisdições nacionais ou não nacionais apresentam, cada vez mais acentuadamente, questões geralmente complexas e de repercussão ampla, amiúde, para além das fronteiras nacionais e que reivindicam a experiência do diálogo.

A referência pelos sistemas de justiça a normas e a decisões não nacionais – regionais, supranacionais e internacionais -, torna-se comum entre as práticas judiciais. Consistem, segundo Marcelo Neves, em “comunicações transversais”[2] entre a jurisdição nacional e a não nacional que conduzem necessariamente à atitude de cooperação e ao exercício de uma “fertilização cruzada constitucional”[3] – e também convencional -. Essa cooperação contribui enormemente para a construção de uma jurisprudência global em matéria de direitos humanos dotada de autoridade persuasiva, como explica a distinta doutrina da judicial comity[4].

Essa influência recíproca e transversal de sistemas e culturas jurídicas entre si e que interfere no conteúdo das decisões judiciais, deságua em um papel relativamente novo exercido pelos juízes, fruto de duas vertentes: a do pluralismo jurídico e a da interdependência entre direitos e sistemas de justiça.

Da atuação da CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos -, que compõe o sistema mais amplo de proteção aos direitos humanos na América Latina, podem ser extraídos elementos que comprovam o exercício desses diálogos destinados à harmonização de interpretação dos marcos normativos de direitos humanos. Bem se vê que a atualidade de Nietzsche é indepassável.

Com efeito, no ano de 2011 os quatro Países fundadores do Mercosul – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – apresentaram junto a CIDH uma consulta, por meio do instrumento jurídico-processual denominado de Opinião Consultiva, para que esse Tribunal precisasse quais seriam as medidas adequadas para tratar, no plano interno, as questões emergentes da situação das crianças migrantes, bem como a de seus pais.

No mês de agosto passado a CIDH julgou a Opinião Consultiva nº 21/14[5]. Nessa ocasião, ela precisou que os Estados solicitantes devem: 1) adotar medidas internas de proteção considerando o ordenamento interno mas também aquelas previstas em tratados ou outros instrumentos internacionais; 2) proteger e buscar o desenvolvimento integral das crianças independentemente de sua nacionalidade ou condição migratória; 3) avaliar as condições específicas de crianças que requeiram proteção internacional; 4) garantir o acesso à justiça por meio do devido processo, em processos judiciais e administrativos; 5) permitir que tais garantias estejam presentes em todo o processo migratório; 6) evitar privar as crianças de liberdade para acautelar os fins do processo migratório nem fundamentar essa medida pelas condições de ingresso no país; 7) criar alojamentos que respeitem o princípio da separação e o da unidade familiar; 8) evitar devolver, expulsar deportar ou de qualquer forma transferir as crianças migrantes quando sua vida ou integridade física estiverem em risco; 9) estabelecer procedimentos eficientes para poder identificar as situações de asilo e de refúgio; 10) considerar que as obrigações impostas referem-se a um tema complexo e mutável e que deve ser entendido no âmbito do desenvolvimento progressivo do direito internacional dos direitos humanos.

É de ser registrado que esta foi a primeira vez na história da atuação da CIDH que não só um grupo de Estados mas, antes, um grupo que forma um bloco de integração econômica, política e social, apresenta consulta à Corte de Direitos Humanos para buscar precisão sobre a interpretação do direito convencional e internacional sobre direitos humanos, no caso, sobre a proteção dos direitos das crianças migrantes.

De fato, tal atitude demarca duas questões relevantes no âmbito da internacionalização do direito. De um lado, uma atitude de abertura dos próprios Estados integrados e a vontade conjunta de dar tratamento harmônico à mesma matéria. De outro, expressa, primeiro, o seu reconhecimento da jurisdição da CIDH e da importância do diálogo proporcionado pelo uso da opinião consultiva. Trata-se de uma tomada de posição que os compromete com relação ao cumprimento de casos passados e futuros julgados pela Corte de Direitos Humanos.

Segundo, expressa a vontade de reunir numa só decisão, destinada não só aos Países solicitantes, mas a todos os que integram o conjunto de Estados da OEA, a interpretação do Tribunal sobre tema agudo e importante relativo às crianças que, por sua condição, fazem parte do grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade.

A decisão, pode-se destacar, marca o primado inderrogável da pessoa humana e de seus direitos humanos. Mas avança no quadro construtivo dos chamados valores comuns da humanidade que se inserem no que se concebe como o “irredutível humano”, compreendido como a base da condição humana em qualquer lugar. Sua violação contra alguém, independente do espaço em que ocorra, será considerada como praticada contra qualquer pessoa humana. Esse, seguramente, é o grande desafio da época atual. Identificar “valores” ou “bens” comuns universais em um contexto em que também as diferenças devem ser preservadas e respeitadas.

Gostaria de chamar a atenção aqui para dois pontos importantes, esperando que o leitor faça uma pausa para pensar sobre a procedência ou não deles. O primeiro relaciona-se ao papel do direito processual para a construção desses valores comuns da humanidade, na medida em que os tribunais de direitos humanos têm sido cada vez mais chamados a decidir sobre questões viscerais que dizem respeito a esses direitos. O segundo, diz respeito à importância não só do exercício do diálogo interjurisdicional, quanto também do diálogo praticado entre os tribunais de direitos humanos e instituições estatais e não estatais. Como referido, o instrumento jurídico-processual da opinião consultiva emerge como uma das condições de possibilidade desse diálogo no sistema interamericano.

Assim, se de um lado o que há é a internacionalização dos direitos humanos e, de outro, a globalização da economia, é possível perceber a constituição do que se convencionou chamar de ordem mundial representada por uma verdadeira transformação nos contornos estatais e dos institutos clássicos do direito internacional.

Bem se vê, então, que a emergência de redes de interdependências estatais e não estatais provoca a erosão da soberania, coloca em questão o modelo moderno de contrato social e fragiliza o “nacionalismo metodológico” de que tratou Ulrich Beck. Há, desse modo, um processo jurídico em curso que provoca a necessidade não de uma refundação e sim derefundações daquele contrato.

Reconhecer ser possível construir a categoria de bens comuns mundiais para além dos interesses econômicos, então englobando os direitos humanos, é um dos pressupostos para consolidar o direito cosmopolítico e criar consenso em torno de uma comunidade mundial de valores. Desse modo, o sistema de justiça é cada vez mais reivindicado a enfrentar as questões da humanidade por meio da comparação e da “condenação ao contato” por meio do diálogo. É relevante pensar sobre tais questões tomando-se como exemplo a decisão da CIDH na Opinião Consultiva 21/2014.

Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada

[1] NIETZSCHE, F. Humano demasiado humano. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p. 31
[2] NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 117-118.
[3] SLAUGHTER, Anne-Marie. A new world order. Princeton: Princeton University Press, 2004. p. 69.
[4] Idem. p. 67.
[5] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_21_esp.pdf.

Fonte: http://justificando.com/2014/10/27/condenacao-ao-contato-para-consolidar-os-direitos-humanos/

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Apresentação de trabalhos na 29ª Jornada Acadêmica Integrada da UFSM

A MARGEM NACIONAL DE APRECIAÇÃO E SUA (IN)APLICAÇÃO PELA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS EM MATÉRIA DE ANISTIA: UMA FIGURA HERMENÊUTICA A SERVIÇO DO PLURALISMO ORDENADO?
Jânia Maria Lopes Saldanha
Márcio Morais Brum



DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE JUÍZES: OS SISTEMAS DE JUSTIÇA COMO PONTES DE TRANSIÇÃO PARA EFETIVAR DIREITOS HUMANOS
Jânia Maria Lopes Saldanha
Bolívar Kokkonen
Gabriel Mendes


O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO CONTEXTO DA MUNDIALIZAÇÃO DO DIREITO: DIÁLOGOS VERTICAIS COM A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Jânia Maria Lopes Saldanha
Rafaela da Cruz Mello



VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS E MANIFESTAÇÕES NO BRASIL: O PROBLEMA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E SUA CRIMINALIZAÇÃO
Jânia Maria Lopes Saldanha
Francine Salgado Cadó