quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A “condenação ao contato” para consolidar os direitos humanos

Por Jânia Maria Lopes Saldanha


A perspicácia sensível de Nietzsche[1]identificou o Século XIX como a “era da comparação”. Ele afirmou que a interpenetração de homens e a polifonia de esforços para se colocar em contato representava verdadeira oposição ao isolamento e ao fechamento das sociedade nacionais.

Exercer o comparatismo e adotar o ponto de vista do “outro” traduz uma experiência singular, ocasião em que seu autor universaliza-se na medida em que se abre ao aprendizado de encontrar respostas em ordenamento jurídico que não é o seu. E o “contato” pode derivar da experiência do diálogo.

No mundo do direito, tal diálogo pode ser identificado nas conversações e citações jurisprudenciais recíprocas que são praticadas entre os mais diversos sistemas de justiça nacionais e não nacionais, como também entre esses sistemas e outros atores que atuam no vasto cenário das relações internacionais. A permeabilidade ao “exterior” é, sem dúvida, resultado das trocas globais e da facilitação das comunicações.

Não é novidade, pois, que os processos judiciais que tramitam em jurisdições nacionais ou não nacionais apresentam, cada vez mais acentuadamente, questões geralmente complexas e de repercussão ampla, amiúde, para além das fronteiras nacionais e que reivindicam a experiência do diálogo.

A referência pelos sistemas de justiça a normas e a decisões não nacionais – regionais, supranacionais e internacionais -, torna-se comum entre as práticas judiciais. Consistem, segundo Marcelo Neves, em “comunicações transversais”[2] entre a jurisdição nacional e a não nacional que conduzem necessariamente à atitude de cooperação e ao exercício de uma “fertilização cruzada constitucional”[3] – e também convencional -. Essa cooperação contribui enormemente para a construção de uma jurisprudência global em matéria de direitos humanos dotada de autoridade persuasiva, como explica a distinta doutrina da judicial comity[4].

Essa influência recíproca e transversal de sistemas e culturas jurídicas entre si e que interfere no conteúdo das decisões judiciais, deságua em um papel relativamente novo exercido pelos juízes, fruto de duas vertentes: a do pluralismo jurídico e a da interdependência entre direitos e sistemas de justiça.

Da atuação da CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos -, que compõe o sistema mais amplo de proteção aos direitos humanos na América Latina, podem ser extraídos elementos que comprovam o exercício desses diálogos destinados à harmonização de interpretação dos marcos normativos de direitos humanos. Bem se vê que a atualidade de Nietzsche é indepassável.

Com efeito, no ano de 2011 os quatro Países fundadores do Mercosul – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – apresentaram junto a CIDH uma consulta, por meio do instrumento jurídico-processual denominado de Opinião Consultiva, para que esse Tribunal precisasse quais seriam as medidas adequadas para tratar, no plano interno, as questões emergentes da situação das crianças migrantes, bem como a de seus pais.

No mês de agosto passado a CIDH julgou a Opinião Consultiva nº 21/14[5]. Nessa ocasião, ela precisou que os Estados solicitantes devem: 1) adotar medidas internas de proteção considerando o ordenamento interno mas também aquelas previstas em tratados ou outros instrumentos internacionais; 2) proteger e buscar o desenvolvimento integral das crianças independentemente de sua nacionalidade ou condição migratória; 3) avaliar as condições específicas de crianças que requeiram proteção internacional; 4) garantir o acesso à justiça por meio do devido processo, em processos judiciais e administrativos; 5) permitir que tais garantias estejam presentes em todo o processo migratório; 6) evitar privar as crianças de liberdade para acautelar os fins do processo migratório nem fundamentar essa medida pelas condições de ingresso no país; 7) criar alojamentos que respeitem o princípio da separação e o da unidade familiar; 8) evitar devolver, expulsar deportar ou de qualquer forma transferir as crianças migrantes quando sua vida ou integridade física estiverem em risco; 9) estabelecer procedimentos eficientes para poder identificar as situações de asilo e de refúgio; 10) considerar que as obrigações impostas referem-se a um tema complexo e mutável e que deve ser entendido no âmbito do desenvolvimento progressivo do direito internacional dos direitos humanos.

É de ser registrado que esta foi a primeira vez na história da atuação da CIDH que não só um grupo de Estados mas, antes, um grupo que forma um bloco de integração econômica, política e social, apresenta consulta à Corte de Direitos Humanos para buscar precisão sobre a interpretação do direito convencional e internacional sobre direitos humanos, no caso, sobre a proteção dos direitos das crianças migrantes.

De fato, tal atitude demarca duas questões relevantes no âmbito da internacionalização do direito. De um lado, uma atitude de abertura dos próprios Estados integrados e a vontade conjunta de dar tratamento harmônico à mesma matéria. De outro, expressa, primeiro, o seu reconhecimento da jurisdição da CIDH e da importância do diálogo proporcionado pelo uso da opinião consultiva. Trata-se de uma tomada de posição que os compromete com relação ao cumprimento de casos passados e futuros julgados pela Corte de Direitos Humanos.

Segundo, expressa a vontade de reunir numa só decisão, destinada não só aos Países solicitantes, mas a todos os que integram o conjunto de Estados da OEA, a interpretação do Tribunal sobre tema agudo e importante relativo às crianças que, por sua condição, fazem parte do grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade.

A decisão, pode-se destacar, marca o primado inderrogável da pessoa humana e de seus direitos humanos. Mas avança no quadro construtivo dos chamados valores comuns da humanidade que se inserem no que se concebe como o “irredutível humano”, compreendido como a base da condição humana em qualquer lugar. Sua violação contra alguém, independente do espaço em que ocorra, será considerada como praticada contra qualquer pessoa humana. Esse, seguramente, é o grande desafio da época atual. Identificar “valores” ou “bens” comuns universais em um contexto em que também as diferenças devem ser preservadas e respeitadas.

Gostaria de chamar a atenção aqui para dois pontos importantes, esperando que o leitor faça uma pausa para pensar sobre a procedência ou não deles. O primeiro relaciona-se ao papel do direito processual para a construção desses valores comuns da humanidade, na medida em que os tribunais de direitos humanos têm sido cada vez mais chamados a decidir sobre questões viscerais que dizem respeito a esses direitos. O segundo, diz respeito à importância não só do exercício do diálogo interjurisdicional, quanto também do diálogo praticado entre os tribunais de direitos humanos e instituições estatais e não estatais. Como referido, o instrumento jurídico-processual da opinião consultiva emerge como uma das condições de possibilidade desse diálogo no sistema interamericano.

Assim, se de um lado o que há é a internacionalização dos direitos humanos e, de outro, a globalização da economia, é possível perceber a constituição do que se convencionou chamar de ordem mundial representada por uma verdadeira transformação nos contornos estatais e dos institutos clássicos do direito internacional.

Bem se vê, então, que a emergência de redes de interdependências estatais e não estatais provoca a erosão da soberania, coloca em questão o modelo moderno de contrato social e fragiliza o “nacionalismo metodológico” de que tratou Ulrich Beck. Há, desse modo, um processo jurídico em curso que provoca a necessidade não de uma refundação e sim derefundações daquele contrato.

Reconhecer ser possível construir a categoria de bens comuns mundiais para além dos interesses econômicos, então englobando os direitos humanos, é um dos pressupostos para consolidar o direito cosmopolítico e criar consenso em torno de uma comunidade mundial de valores. Desse modo, o sistema de justiça é cada vez mais reivindicado a enfrentar as questões da humanidade por meio da comparação e da “condenação ao contato” por meio do diálogo. É relevante pensar sobre tais questões tomando-se como exemplo a decisão da CIDH na Opinião Consultiva 21/2014.

Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada

[1] NIETZSCHE, F. Humano demasiado humano. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p. 31
[2] NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 117-118.
[3] SLAUGHTER, Anne-Marie. A new world order. Princeton: Princeton University Press, 2004. p. 69.
[4] Idem. p. 67.
[5] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_21_esp.pdf.

Fonte: http://justificando.com/2014/10/27/condenacao-ao-contato-para-consolidar-os-direitos-humanos/

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Apresentação de trabalhos na 29ª Jornada Acadêmica Integrada da UFSM

A MARGEM NACIONAL DE APRECIAÇÃO E SUA (IN)APLICAÇÃO PELA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS EM MATÉRIA DE ANISTIA: UMA FIGURA HERMENÊUTICA A SERVIÇO DO PLURALISMO ORDENADO?
Jânia Maria Lopes Saldanha
Márcio Morais Brum



DIÁLOGOS CRUZADOS ENTRE JUÍZES: OS SISTEMAS DE JUSTIÇA COMO PONTES DE TRANSIÇÃO PARA EFETIVAR DIREITOS HUMANOS
Jânia Maria Lopes Saldanha
Bolívar Kokkonen
Gabriel Mendes


O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO CONTEXTO DA MUNDIALIZAÇÃO DO DIREITO: DIÁLOGOS VERTICAIS COM A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Jânia Maria Lopes Saldanha
Rafaela da Cruz Mello



VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS E MANIFESTAÇÕES NO BRASIL: O PROBLEMA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS E SUA CRIMINALIZAÇÃO
Jânia Maria Lopes Saldanha
Francine Salgado Cadó






Rindo com Diógenes, pensando com Kant e fazendo uma nova lei de migrações para o Brasil

Por Jânia Maria Lopes Saldanha

Origem: http://justificando.com/2014/10/13/rindo-com-diogenes-pensando-com-kant-e-fazendo-uma-nova-lei-de-migracoes-para-o-brasil/

Num curioso livro denominado Do que riem as pessoas inteligentes[1] Manfred Geier lembrou como Diógenes – o “Cínico”, nascido em Sínope, na costa do mar Negro entre 410 e 400 a.C -, ironizou Platão e Alexandre e o quanto no seu cinismo estaria em jogo uma porção de ironia e de comicidade. Tratando de uma filosofia do riso, Geier[2], invocando reflexão feita por Peter Sloterdijk, pretendeu mostrar que embora Diógenes vivesse em um barril em meio aos cães, vivia, ria e cuidava para que ficasse a impressão de que por trás de tudo o que existia não havia propriamente um desnorteamento, mas sim “uma clara reflexão.”

Há vínculos mais estreitos do que se pode imaginar entre o estranho Diógenes do riso, livre do anseio pela posse de bens materiais, e aquele que dizia não ser a pólis o verdadeiro lugar dos homens, mas sim o mundo, eleito por ele como a verdadeira pátria.

Para Diógenes, a única e verdadeira ordem social encontrava-se somente no universo. Remarca Geier, no entanto, que Diógenes lutava, como cosmopolita, contra as fronteiras dapólis “mas não sentido de uma política mundial globalizante”[3], e sim no sentido de que os indivíduos autônomos deveriam estar “presos” apenas ao cosmos, única ordem na qual cada um poderia ser acolhido.

Assim, das reflexões cosmopolitas de Diógenes, no mundo antigo, até aquelas realizadas por Kant no início da modernidade acerca da possível construção de uma “ordem cosmopolita da hospitalidade”, muito tempo se passou. Mas, de fato, pode-se seguramente dizer que as preocupações com um mundo pautado pelo “comum” e pelo exercício e gozo de direitos, que não conheçam fronteiras, não é um invento dos tempos modernos.

Como referido, Diógenes, rejeitando a pólis, perguntado de onde era, respondeu ser “do cosmos”, inaugurou a manifestação em favor de um ideal internacionalista ou, quiçá, cosmopolita[4]. E Kant, no terceiro artigo definitivo da obra À Paz Perpétua[5], apresentou, em nome do direito de visita, um contundente manifesto contra os processos colonizadores europeus. Para ele o direito cosmopolita garantiria a “hospitalidade universal”. Desse modo, mesmo que contemporaneamente o vocabulário jurídico se enriqueça de novas expressões como globalização, mundialização, internacionalização, entre outras, é sabido que para a compreensão do termo “cosmopolitismo” resta muito a construir e não são poucas as divergências interpretativas e práticas que o termo reúne.

Essa alusão, caro leitor, foi feita para provocar reflexão sobre a importância do Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, apresentado no ano em curso por uma Comissão de Juristas[6] nomeada pelo Ministério da Justiça.

Como é de conhecimento público, os movimentos migratórios consistem em fenômeno global complexo que decorre de inúmeros fatores internos e externos aos Estados. Os migrantes, invariavelmente, fazem parte de um grupo de pessoas submetidas à situação de extrema vulnerabilidade social e jurídica. A vulnerabilidade é resultado do reconhecimento explícito de que os direitos e obrigações não são repartidos de modo igual entre as populações ou entre distintos grupos. Por um lado, essa distinção de tratamento limita o acesso a uma gama de direitos. Por outro, aos integrantes do grupo, há uma ausência ou uma drástica limitação de medidas de proteção para que tenham uma vida digna. A negação dos direitos e de proteção jurídica agrava, como se sabe, a condição de vulnerabilidade e faz muito distante o ideal cosmopolita de Diógenes e de Kant.

Rosmerlin Estupiñan-Silva[7], em memorável texto, diz que existem macro-forças de caráter interno que produzem situações de profunda vulnerabilidade de determinados grupos. Elas decorrem: (a) de desequilíbrios econômicos; (b) dos grandes projetos de desenvolvimento de urbanização e indústria; (c) de derivas políticas em razão da existência de governos ditatoriais, (d) de conflitos armados internos e também da exposição contínua da ameaça aos direitos humanos. Contudo, outros fatores como os de fragilidade psíquica e social são retirados de seu texto. A fragilidade psíquica pode ser identificada nas questões de crianças e adolescentes, nas questões de gênero – como é o caso das mulheres e dos homossexuais – nas questões de saúde – que é o caso das pessoas com algum tipo de deficiência – entre outros. A fragilidade social é constatada na fragilidade dos trabalhadores – em especial dos trabalhadores imigrantes “sem papel” -, aos presos, aos dirigentes de partidos políticos de oposição em democracias ainda frágeis, aos jornalistas, aos defensores de direitos humanos, entre outros[8].

Os migrantes podem ser inseridos numa situação específica de vulnerabilidade, sobretudo quando se encontram, do ponto de vista jurídico das ordens jurídicas dos Estados e atualmente da União Europeia, em condição de ilegalidade. Tal vulnerabilidade os submete a constantes violações dos direitos humanos, especialmente ao direito de acesso à justiça, ao devido processo legal, à moradia, ao trabalho e à saúde. Os Estados latino-americanos, em sua grande maioria, ainda pautam suas políticas migratórias e o tratamento jurídico dos migrantes em leis feitas sob a égide dos regimes autoritários. De fato, tal situação denota que há um profundo descompasso entre, de um lado, o sistema protetivo dos direitos humanos para a América Latina e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, de outro, com o que se faz no âmbito interno dos Estados em relação aos migrantes.

O Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil aponta uma saída luminosa para esse delicado, difícil e tão maltratado tema. Se aprovado, colocará nosso País, mais uma vez, na vanguarda dentre aqueles que souberam enfrentar com lucidez e maturidade temas globais relativos à toda humanidade, mas que ainda são profundamente locais.

Dados os limites deste espaço, gostaria apenas de mencionar ao leitor que o referido Anteprojeto prevê no art. 3º um significativo quadro principiológico protetivo dos direitos humanos dos migrantes. Os princípios jurídicos, por sua transcendentalidade, não nascem de vontades unilaterais, altruístas ou egoístas. Derivam sim dos processos históricos, das reivindicações da comunidade e dos intérpretes do sistema jurídico – constitucional e convencional – ao longo do tempo. Evoluem à medida que a democracia evolui e se consolida. Quem faz a lei deve ter sabedoria para fazer essa interpretação hermenêutica. E quem faz a lei – primeiro quem escreveu e, depois, quem votou por meio de um processo legislativo legítimo – deverá ter consciência de que é autor de um ou de vários dos “capítulos do romance em cadeia” que constitui o Direito, do qual nos falou Dworkin.

Assumir esse compromisso é saber identificar que os escritores precedentes já haviam dado início a uma nova história e que ela deverá ter continuidade. No caso dos direitos dos migrantes e à luta para que sejam reduzidos, senão totalmente eliminados os fatores que provocam sua vulnerabilidade jurídica, política e social, o romance em cadeia começou quando inúmeros textos normativos protetivos dos direitos humanos – e que os alcança – surgiram no cenário internacional, do que são exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, ambas ratificadas e internalizadas por inúmeros Estados.

A previsão de que os direitos humanos dos migrantes devem estar pautados na universalidade, indivisibilidade e interdependência, de que a xenofobia, o racismo e quaisquer outras formas de discriminação sejam repudiadas, de que não haja a criminalização da imigração, de que seja promovida a entrada regular e a regularização dos migrantes já aqui instalados, de que seja garantida sua acolhida humanitária, de que sejam reconhecidos os direitos de reunião familiar, de que haja igualdade de tratamento, de que a inclusão social e laboral e o acesso aos direitos sociais sejam efetivos, bem como lhes sejam assegurada a promoção e a difusão dos direitos, liberdades e garantias em um cenário político e jurídico em que os Estados ajam em cooperação com outros acerca da origem, trânsito e destino dos migrantes, conforma tal quadro principiológico e confirma que a Comissão de juristas que elaborou o Anteprojeto respeitou o compromisso de respeitar a integridade do Direito e de continuar a escrever de forma coerente os capítulos do “romance dos direitos humanos”.

Se aprovado – e espera-se vivamente que seja –, o Anteprojeto de Migrações recolocará o Brasil no caminho democrático neste campo e confirmará, finalmente, que o País foi sensível às demandas para decretar a morte do enferrujado, inconstitucional e inconvencional “Estatuto do estrangeiro”.

Finalmente, a especificidade latino-americana não pode ser desprezada porque, do ponto de vista comparado, pode constituir-se numa importante referência a ser seguida. Diz o artigo 2º da Convenção Americana de Direitos Humanos que se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1º ainda não estiverem garantidos por disposições legislativas ou de outra natureza, “os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.” A jurisprudência da Corte Interamericana tem reforçado ao longo de sua atuação o dever de os Estados adotarem medidas internas para concretização jurídica e fática dos direitos humanos. Esse Tribunal em inúmeros casos já reconheceu a condição de vulnerabilidade dos migrantes. Por ocasião do julgamento da OC – Opinião Consultiva nº 18/03 a CIDH precisou que a condição de indocumentado do migrante o coloca numa condição de fragilidade jurídica acrescida pelo risco de violação dos direitos trabalhistas e do acesso à Justiça[9].

O reconhecimento pela Corte de que há o dever de os Estados cumprirem a Convenção Americana – e de adotarem políticas públicas para a plena efetivação desse marco normativo – nessa e em outras matérias, a transforma em um “sujeito ativo” de “resiliência” que, se bem compreendida, consiste no resultado de “múltiplos processos capazes de interromper trajetórias negativas, como as que decorrem da violação dos direitos humanos”[10].

O Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil demonstra que o Brasil, ao dar esse importante passo para dotar a sociedade brasileira de lei avançada em matéria de proteção aos migrantes, não só foi sensível ao trabalho de resiliência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas também assume a condição de ator de resiliência e atualiza o diálogo atemporal entre o riso de Diógenes e o imperativo cosmopolita kantiano.

Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.


[1] GEIER, Manfred. Do que riem as pessoas inteligentes? Uma Pequena filosofia do humor. Rio de Janeiro: Record, 2011.
[2] Ibid., p, 97.
[3] Op. cit., p. 100.
[4] MOLES, J. L. Cosmopolitismo cínico. In: GOULET-CAZÉ, Marie-Odile. BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos. O movimento cínico na Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Loyola, 2007. p. 121-136.
[5] KANT, I. À Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM, 1975, tradução de 1989. p. 43-44.
[6] Fazem parte da Comissão os seguintes juristas: André de Carvalho Ramos, Aurélio Veiga Rios, Clémerson Merlin Cléve, Deisy de Freitas Lima Ventura, João Guilherme Lima Granja Xavier da Silva, José Luis Bolzan de Morais, Paula Abrão, Pedro de Abreu Dallari, Rossana Rocha Reis, Tarciso Dalmaso Jardim e Vanessa de Oliveira Berner. Disponível em: http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/10947.pdf
[7] ESTUPIÑAN-SILVA, Rosmerly. La vulneabilité danas la jurisprudence de la Cour Inter-americaine des droits de l’Homme: Esquisse d’une typologie. In: BOURGORGUE-LARSEN, L. La vulnerabilité saisie par les juges em Europe. Paris: Pedone, 2014, p. 98-99.
[8] Id., p. 101-103
[9] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/index.php/en/advisory-opinions
[10] ESTUPIÑAN-SILVA, Rosmerly. La vulneabilité danas la jurisprudence de la Cour Inter-americaine des droits de l’Homme: Esquisse d’une typologie, op. cit., p. 110.

Daumier, os tempos e os espaços da justiça no Século XXI

Por Jânia Maria Lopes Saldanha

Origem: http://justificando.com/2014/09/29/daumier-os-tempos-e-os-espacos-da-justica-seculo-xxi/

Esse ensaio inicia convidando o leitor a refletir sobre a justiça brasileira a partir da seguinte pergunta: como compatibilizar o modelo de justiça orientado para a produção quantitativa, adotado para debelar a morosidade e enfrentar o elevado número de demandas, com a exigência democrática de que, substancialmente, as decisões do Poder Judiciário tenham qualidade? E ele termina com uma segunda questão, vinculada à primeira, cujo desdobramento futuro será inevitável, que é a de saber se essa mesma justiça está preparada para dar respostas compatíveis com a problemática das violações de direitos humanos e a necessidade de sua proteção.

O esboço de uma possível resposta ao primeiro questionamento não pode ignorar que as críticas lançadas sobre o sistema de justiça e sobre a atuação de um de seus atores, os juízes, não é prerrogativa do tempo presente. Basta lembrar que no Século XIX, o trabalho iconográfico criativo e crítico que constitui a obra Gens de Justice, de Honoré Daumier,retratou com perspicácia ser a justiça francesa, daquela época, pouco acessível e distante dos jurisdicionados.

Nos últimos cinco anos, pode-se afirmar, os programas e metas estabelecidos pelo CNJ para a qualificação do trabalho do Poder Judiciário do Brasil derivam, em boa medida, da constatação da fragilidade do acesso à justiça, seja pela demora na solução dos processos, seja pelo expressivo número de demandas. Esse quadro institucional dota as imagens da justiça caricaturizadas por Daumier de extrema atualidade.

Não obstante deva ser reconhecido o esforço institucional para reduzir a chamada “crise do judiciário”, é preciso pensar se um sistema de justiça orientado massivamente mais para a elevação da produtividade e para a redução do tempo dos processos e menos para a qualidade do conteúdo de suas decisões, não corre o risco de reduzir-se a ser uma justiça apenas do fluxo, da normalização e da barémisation.

Assim, a concorrência “quantitativa” assume a natureza de um valor a ser seguido e os relatórios mensais que indicam o número de processos baixados, por acordos, por sentenças de mérito ou pela aplicação de filtros impeditivos/extintivos de recursos, entre outros, provam a eficiência dos métodos de normalização adotados. Essa vinculação aos mapas e aos índices de produção é que orienta atualmente – e vincula – a atuação dos atores jurídicos, sobretudo os juízes, cuja progressão na carreira, após a edição da EC/45 de 2004, depende de seus índices de produtividade.

Evidentemente, caros leitores, esse conjunto de transformações pelas quais tem passado o sistema de justiça brasileiro, está inserido num quadro amplo de reformas experimentadas em diversos países ocidentais e que constitui uma “nova forma de governar”, como foi antevisto por Foucault[1] no final da década de 70 do século passado, forma essa que estende seus tentáculos a todos as esferas da sociedade, públicas e privadas e que possui como lema a eficiência.


Com efeito, a sociedade brasileira reivindica respostas mais céleres do sistema de justiça. E todos estamos de acordo que o Poder Judiciário, nas democracias contemporâneas, assumiu e assume um papel fundamental para a efetivação dos direitos. Contudo, um olhar perspicaz não pode desconsiderar que as reivindicações para que a justiça seja mais rápida estão inseridas na “economia da urgência” que qualifica as sociedades contemporâneas.

Artmut Rosa chama a atenção para o fato de que as sociedades modernas são reguladas e dominadas por um regime temporal rigoroso e estrito que não está articulado em termos éticos. Trata-se de uma nova lógica, a da aceleração social que, elevada à condição de um conceito unificador, explica que os indivíduos – e as instituições – são “regidos, dominados e reprimidos”[2] por um regime de tempo em grande parte “invisível, despolitizado e indiscutido”[3]. Não é difícil imaginar que a instituição da cultura da urgência/aceleração muito rapidamente tomou o lugar das preocupações com a qualidade, sem que fosse profundamente problematizada. Essa, na verdade, como também lembra Maria Rita Khel[4] constitui a nova economia do sujeito.

Ora, as novas formas de organização e de administração das instituições públicas, dentre elas o Poder Judiciário, expressam a adoção de processos orientados para atingir finalidades próprias de um tipo específico de aceleração: a aceleração técnica. Ela domina os transportes, as comunicações, a produção e os serviços e coloca a otimização da aceleração das operações como o objetivo maior a ser atingido. É esse aspecto da aceleração que está ao centro da dromologia de Paul Virilio[5], aceleração histórica que passa da revolução dos transportes para a revolução das transmissões. Nesse sentido, é preciso refletir sobre as virtudes e os defeitos de uma justiça cada vez mais acelerada, cujo ritmo é extremamente facilitado pela expansão da adoção das tecnologias de informação e comunicação.

De fato, pode-se perceber que os efeitos da aceleração técnica sobre a realidade são profundamente transformadores. Se o Poder Judiciário tem, de certo modo e até mesmo sob pressão da sociedade, assumido essa performance em nome de resultados em menor tempo, há que ser reconhecido que não é ator isolado, pois é conduta praticada no âmbito maior de um regime espaço-temporal que domina as sociedades contemporâneas. O problema é que o tempo, cada vez mais, é colocado pelos homens como um elemento que comprime e, amiúde, fragiliza o espaço. Para o que aqui nos interessa, tal compressão transforma marcadamente a imagem – e o simbólico – do Poder Judiciário, os espaços das audiências, os rituais dos tribunais, o encontro e o diálogo dos atores.

A centralidade que hoje assumem a aceleração das respostas e a redução dos volumes de processos em menor tempo, efetivamente, toma o lugar das preocupações com a qualidade das respostas da justiça. Esse déficit, seguramente, está associado a esse fenômeno sutil da perda de importância do espaço que, segundo Rosa[6], orienta o mundo moderno tardio. Como consequência, as atividades e os desenvolvimentos não são mais localizados. Lugares como os das instituições públicas, cujos exemplos vão das universidades aos sistemas de justiça, bem como os dos atores privados, como os das empresas, tendem a se tornar não lugares, isto é, “lugares sem história, sem identidade e sem relação.”[7]

A quantificação, se assumida como o valor central do funcionamento do Poder Judiciário, não só toma o lugar da indispensável qualidade das decisões, quanto pode expressar que a aceleração – entendida como julgar mais em menor tempo – toma a forma de um novo totalitarismo que provoca novas formas de alienação humana na medida em que a palavra de ordem é a eficiência, o valor magno do sistema econômico.

Chama a atenção que em seu discurso de posse como presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Ricardo Lewandowski, também hoje presidente do CNJ, destacou inúmeros problemas ainda enfrentados pelo Poder Judiciário e diversas medidas que devem ser adotadas ou aprimoradas para reduzi-los. Entretanto, para o Ministro, embora deva o sistema judiciário sofisticar sua atuação para melhorar o acesso à justiça, reduzir o tempo e o volume de processos e, malgrado a alta carga de trabalho que os juízes brasileiros enfrentam diariamente, esses devem em sua atividade interpretativa cuidar de aplicar o direito convencional no que concerne ao respeito aos direitos humanos.

Entre as propostas de mudança do Poder Judiciário, alertou o Ministro para a necessidade de que a justiça brasileira, a par do protagonismo interno que já existe e que se intensificou após a Constituição de 1988, assuma um protagonismo externo. Para tanto, ressaltou que os magistrados devem, com mais habitualidade, conhecer e aplicar “os institutos do direito comunitário e do direito internacional, à semelhança do que ocorre no Velho Continente, onde os juízes foram e continuam sendo os grandes responsáveis pela integração europeia, sobretudo ao garantirem a igualdade de direitos aos seus cidadãos.”[8]

É certo, esse é um desafio que se apresenta ao Poder Judiciário e que reclama, não apenas cuidado com a quantidade decisória mas, sobretudo, com a qualidade das decisões que devem ser adequadas ao regime convencional de direitos humanos. Não se trata então, apenas da rendição à lógica acelerada do tempo dos processos em nome da eficiência e sim da reivindicação de uma nova compreensão das fontes do Direito e do seu espaço de aplicação não mais reduzido aos limites do Estado Nacional.

Esse é um convite para aplicação do “comum”[9] como um princípio político adequado às questões que tratam de direitos humanos e para o exercício dos diálogos transjurisdionais como uma forma de emancipação às reduções quantitativas a que tem sido submetida a justiça.Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.

[1] FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2004.
[2] ROSA, Artmut. Aliénation et accélération. Paris: Découvert, 2012, p. 8.
[3] Id.
[4] Kehl, Maria Rita: Aceleração e depressão. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=gGjPmVTIiCk
[5] VIRILIO, Paul. Vitesse et politique. Essai de dromologie. Paris: Galilée, 1977.
[6] Id., p. 21
[7] Id. Ibid.
[8] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=274844. Acesso em 27 de setembro de 2014.
[9] Veja-se: DARDOT, P. LAVAL, C. Commun. Essai sur la révolution au XXI Siècle. Paris: La Découvert, 2014.