quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

A Paris de Charlie, por Jânia Maria Lopes Saldanha

Especial para o blog saudeglobal.org
Paris e a França estão mais pobres. Uma pobreza que jamais poderá ser substituída por aquilo que o dinheiro ilusoriamente poderá comprar ou que políticas sociais poderão fazer para melhorar as condições de vida materiais das pessoas. É uma pobreza espiritual, um tiro certeiro em fontes de criatividade e de pulsão de vida que não andam separadas do exercício da liberdade de pensamento e da ousadia em criticar agudamente toda a forma de poder. Pontos luminosos que dedicaram a existência em demarcar, por meio da arte inteligente, sofisticada e atenta, as virtudes e defeitos da trajetória humana e a linha tênue que os separa e sobre a qual todos nós caminhamos.
Ainda há uma geração de europeus que conheceram o quanto mentcouv-charlie-hebdoes de pessoas como as que ontem foram abatidas pelos atos de violência e que fazem diferença para compreender e transformar o mundo em algo melhor, fazem falta. Caso elas tivessem sobrevivido aos horrores das duas guerras do Século XX quanto mais a humanidade teria ganho e evoluído? Esse é a questão fundamental que deve ser feita por cada um de nós com a tragédia do Charlie Hebdo.
Não há nada pior, na perspectiva da existência individual do que ser derrubado em pleno vôo. Não há nada pior para a família e para os amigos. Mas do ponto de vista da sociedade há também uma geração de pessoas que firmaram suas concepções políticas a partir da verve refinada dos cartunistas que ontem se foram.
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Ontem ouvi de um colega francês: “Cabu, Wolinski, Charb,…leurs dessins nous accompagnent depuis tellement longtemps….” O que fica é um vazio para o futuro por aquilo que seria possibilidade e que a morte trágica impossibilita.
O céu parisiense, nesse período de inverno, tem se mantido permanentemente cinza. Para nós brasileiros que vivemos aqui, acostumados ao colorido do nosso clima tropical, ele faz falta. Mas essa falta de luminosidade natural é compensada pela forma de viver desse povo inteligente, bem formado politicamente e que sabe dar à liberdade o seu lugar fundamental no seu modo de viver. Paris tem o colorido do plural, da diversidade, da mistura das línguas e de modos de ser.
place-republique-manifestation-charlie-hebdoVivendo muito perto da Place de la République ontem à noite pude constatar a força social que vem dessa formação que radicaliza a importância da República e de tudo o que a constitui. Milhares de pessoas de todas as idades lotaram essa região de Paris, o epicentro das manifestações democráticas da França. Tristes mas de olhar elevado. Nenhuma manifestação discriminatória, dessas tantas que sabemos que existem e que são disseminadas pelo mundo. Nenhuma expressão de violência. Ao contrário. O que se viu foi o simples apelo aos princípios fundamentais da democracia: liberdade, igualdade e fraternidade.
mundo-atentado-terrorista-franca-charles-hebdo-20150107-0022-size-598O que nos salva da nossa capacidade de produzir barbárie, inteligentemente identificada por Freud, é a nossa capacidade maior e mais poderosa de nos indignarmos contra ela. É a irrenunciável possibilidade de usar contra qualquer força violenta que nós mesmos produzimos, a força da cultura, das ideias – bem humoradas – e dos princípios pro homine que durante Séculos construímos. Essa tem sido a mensagem e a luta bem sucedida de Charlie !
Jânia Maria Lopes Saldanha é Professora da Universidade Federal de Santa Maria, atualmente em Pós-Doutorado (CAPES) junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice e a Universidade de Paris II
Imagens: Jânia Saldanha [Centro Perelman de Philosophie du Droit]; capa do Charlie Hebdo de 01/11/2011; montagem com fotos, em sentido horário, de Charb, Wolinski, Cabu e Tignous, assassinados ontem; fotos da manifestação na Praça da República em 07/01/2015 [Le Monde]