quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Charlot, os ONNI- Objetos normativos não identificados e a “arte” de decidir por standards e indicadores

Por Jânia Maria Lopes Saldanha
Sabe o leitor que o surgimento da revolução industrial transformou o mundo das manufaturas numa grande usina de produção em série, tão bem ilustrada pela verve artística de Charles Chaplin no filme “Tempos Modernos”. O rendimento no trabalho passou a depender da divisão das tarefas e dela foi apenas um passo para a objetificação do trabalhador que se viu, inexoravelmente, subjugado ao seu ritmo. O célebre “Charlot” foi o retrato da desumanização desse tipo de trabalho sem espaço para a vida criativa e para a realização pessoal.
Embora essa seja apenas uma pequena lembrança das inúmeras “inaugurações” ocorridas na passagem do Século XIX para o Século XX, não é preciso muito esforço imaginativo para perceber que a divisão do trabalho em tarefas acentuou a necessidade da “normalização técnica”, ou seja, de normas[1] de especificação e de estandartização em nome da eficiência da produção. Mas, de fato, a virada decisiva no campo da normalização foi a espantosa procedimentalização das normas que o Século XX produziu e que, agora, no Século XXI são cada vez mais sofisticadas. Refiro-me às chamadas “normas procedimentais” para responder às exigências das organizações que indicam a vitória da performatividade sobre as regras, isto é, a vitória dos aspectos organizacionais sobre os aspectos jurídicos – e substanciais – no sentido estrito desse termo.
Trata-se, por um lado, de uma transformação profunda das formas, dos processos de regulação e da própria natureza das regras e, por outro, da expansão de um outro tipo de normatividade. Transformação e expansão que, juntas, expressam um fenômeno de caráter global.
Assim, esse movimento sútil coloca as clássicas regras jurídicas em concorrência com outros tipos de normas, quais sejam, as técnicas e as de gestão produzidas pelos especialistas e não pelo legislador. Tais normas, especialmente no contexto transnacional, experimentam sucesso em relação às regras e instituições clássicas. Entretanto, é preciso fixar o olhar para perceber que, do ponto de vista das ordens jurídicas nacionais, esse fenômeno também não é de todo desconhecido.
Na verdade, é preciso dizer que a história das normas não é fenômeno recente. A linguagem, a escrita e os sistemas numéricos não passam de sistemas de normas. Mas é importante considerar que a sua concorrência com as regras e instituições jurídicas é o que marca indelevelmente, por exemplo, o contexto da União Europeia e da globalização como um todo. Então, o passado revigora-se no presente apenas de forma sofisticada.
Com efeito, essas normas de dupla face – técnicas e de gestão – ocupam um lugar ainda pouco explorado pelos juristas, daí serem metaforicamente denominadas pelos pensadores da Escola de Bruxelas de ONNI[2] – objetos normativos não identificados. Ambas as normas são feitas por experts ou por técnicos. As primeiras, por exemplo, prestam-se a especificar produtos em nome das políticas de qualidade total ou de “zero defeito”, normas essas que são componentes essenciais para o funcionamento da economia contemporânea, do que é exemplo o conjunto de normas ISO, como a 9000 e 14000 em matéria de gestão ambiental. As segundas, entram no campo da gerência, organização e direção das condutas humanas para assegurar a qualidade, também em nome da eficiência. Mas essa qualidade, como se sabe, não é definida de maneira substancial e sim procedimental, o que representa a passagem de uma economia de produtos a uma economia de serviços em busca da “qualidade total”.
Convido o leitor a refletir, então, sobre a existência de um “hibridismo” entre regras jurídicas e as normas técnicas e de gestão que, no entanto tem sido mantido na invisibilidade. O grande sucesso dessas últimas encontra-se na razão inversa ao silêncio que as rodeia.
Assim, nossas concepções clássicas do direito são débeis para explicar essa transição dos aparelhos institucionais para fazer a mediação entre o que é produzido pela “expertise” dos laboratórios, pelas reuniões dos especialistas e pelos Parlamentos nacionais e não nacionais.
Mais imediatamente, o desafio que nos bate à porta é entender, por exemplo, se as reformas de instituições públicas como o Poder Judiciário, embora encontrem justificativa na crise do sistema de justiça, não sucumbiram à linguagem da normalização técnica e de gestão, em nome da eficiência produtiva. A “responsabilidade empresarial” dos tribunais ganha relevância no contexto do discurso de promoção do Estado de Direito alinhado à boa governança. Desse modo, como já recomendou o Banco Mundial para países da América Latina, dentre eles o Brasil, a eficiência e eficácia do Poder Judiciário devem ser perseguidas juntamente com a sua independência.
Mas onde seria avistado o Charlot do Século XXI aqui? Na rendição dos atores que realizam o trabalho do Poder Judiciário, sobretudo os juízes, aos standards das práticas apenas para cumprir o timing do processo em prazo razoável e para dar conta de um conjunto de metas destinadas a reduzir o número de processos, as taxas de congestionamento e o número de recursos, entre outros. Assim, a modulação dos serviços do Poder Judiciário aos padrões de qualidade, descritos em inúmeros documentos oficiais e relatórios anuais como estratégias para melhorar os resultados de sua atividade é palpável e, ao que parece, inexorável.
O perigo está em nutrir uma concepção de qualidade da justiça ligada essencialmente à qualidade organizacional, ao modo, por exemplo, das exigências técnicas da ISO. Nesse contexto, a preocupação com a qualidade das decisões da justiça é desviada para a preocupação com a qualidade dos comportamentos que, inseridos na sua estrutura organizacional, produzem essas decisões.  Cumprir metas e apresentar indicadores em prazo previamente definidos, depender da produtividade para obter promoções na carreira, são exemplos de exigências que alinham os serviços do Poder Judiciário à performatividade dos termos e da linguagem da administração empresarial.
À guisa de conclusão, pode-se dizer que a adoção dessas práticas e linguagem não seria um problema se, apesar delas, o discurso judiciário não ficasse privado da preocupação com a qualidade de suas decisões e sobre a necessidade de que sejam adequadas à Constituição. O predomínio de standards, de normas técnicas e de gestão nos domínios do Poder Judiciário se, em aparência, parece envolver uma linguagem neutra, implica, profundamente, numa escolha valorativa que modifica profundamente o próprio sentido da Justiça.
Jânia Maria Lopes Saldanha Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista Capes processo BEX 2417/14-6. Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Maria.  Advogada.

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