segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Constitucionalismo cosmopolita entre muros visíveis e invisíveis

Por Jânia Maria Lopes Saldanha.


O desejo e as práticas segregacionistas derivados da vontade jurídico-político-social de um conjunto de países embora não sejam algo novo, como é sabido, adquiriram ares transnacionais. 
A representação e materialização desse desejo e dessas práticas podem ser comprovados observando-se os “muros” materiais – como, apenas para citar um de tantos exemplos, o que separa os Estados Unidos e México – e imateriais – também à guisa de exemplo, como os dossiês dos passageiros aéreos, o conhecido Passenger Name Record ou accord PNR [1] -fortalecidos e criados sobretudo após a queda das torres gêmeas em Nova York no ano de 2001.
 Ao “oeste” que se impunha ao “leste”- e também o contrário -  com o Muro de Berlin, cujos 25 anos de sua queda foram recentemente festejados, hoje pode-se afirmar que o “norte” impõe os seus muros “ao sul”. 
Porém, não se trata mais de uma luta bipolar entre dois blocos e sim um ethos [2] defensivo que predomina no mundo ocidental metaforicamente expresso pelos citados muros que se constituem, segundo Wendy Brown [3] em expressões máximas da erosão da soberania e da fragilização da democracia.
Tais divisões visíveis e invisíveis estabelecem uma significativa diferença [4] entre a “mundialização feliz” dos países capitalistas ditos avançados e a “mundialização do desastre” dos países pobres, das favelas e das áreas de etiquetadas com o selo da “ilegalidade” e da exclusão.
Esse quadro negativo e criticável expressa, em verdade, a força da intitulada “banalidade securitária” presente nas políticas públicas estatais e não estatais, como também na atuação das empresas privadas.
Wendy Brown aponta que do ponto de vista da psicanálise da sociedade, as práticas securitárias podem ser explicadas a partir de uma “psicanálise da defesa” expressa por uma angústia ao mesmo tempo social e subjetiva que, por exemplo, toma a forma de um certo tipo de “histeria” coletiva que persegue os imigrantes, os que reivindicam asilo e os que não se insiram na condição de turistas com dinheiro, tampouco sejam homens de negócios bem-sucedidos.
Em suma, depois do 11 de Setembro o mundo oscila entre o endurecimento das políticas de segurança e o respeito à democracia e ao Estado de Direito. No mundo pós-nacional [5] e dominado pelo medo do risco, paulatinamente foi normalizada a associação entre a exigência de segurança e a instituição do político.  [6]
Esse cenário complexo expressa a “guerra infinita” [7] ao terror instaurada pós 2001 e mantém um estado permanente de exceção, como reiteradamente tem sido denunciado pelos defensores da democracia e dos direitos humanos.
Por isso, fragiliza-se o exercício das liberdades fundamentais e torna-se opaca a instituição do cosmopolitismo constitucional que, embora as diferentes experiências e construções históricas dos estados constitucionais, pode ser associado, entre outros aspectos, à notável existência de um bloco de constitucionalidade em matéria de proteção de direitos humanos. 
Pode-se assim dizer, por exemplo, que há entre numerosos países, como os da América Latina, uma verdadeira identidade constitucional nesse campo. E no plano mais amplo essa mesma identidade também é aferível como se vê do teor da Carta da ONU, da Declaração Universal de Direitos Humanos e das Convenções de Direitos Humanos que, juntos, seriam o ponto de partida para a defesa do pluralismo e da democracia.
Não obstante isso, no plano global pode-se ver que as Resoluções 1368 e 1373 [8] do Conselho de Segurança da ONU, respectivamente de 12 e 28 de setembro de 2001, fortaleceram a condição do direito de defesa dos Estados no plano das relações internacionais e os conclamaram a ratificar a Convenção sobre financiamento do terrorismo, ao mesmo tempo em que no plano onusiano foi criado o Comitê contra o terrorismo para assegurar assistência técnica aos Estados e a cooperação internacional nessa matéria. Na mesma linha a Resolução 1989/2011 [9] conclama os Estados a sofisticarem suas práticas de defesa antiterror, relembrando, no próprio texto, do teor da Resolução nº 1333/2001 que criou a “Lista Consolidada” de potenciais suspeitos de terrorismo.
Com isso, lança-se um programa mundial de luta contra o terrorismo. Desse modo, se é certo que os crimes transnacionais devem ser combatidos e responsabilizados os culpados, há de ser destacado que as políticas securitárias têm mostrado seu lado perverso na medida em que sua expressão exponencial é a criminalização da intenção e a conversão de pessoas comuns em suspeitos, potenciais terroristas, jogados a esta condição porque inclusos em listas negras elaboradas unilateralmente por serviços secretos dos Estados. [10]
Assim, surgiu no horizonte um novo slogan: o da “guerra ao terror” que demarca um endurecimento das políticas globais e, no plano dos Estados, um recrudescimento dos particularismos locais, situação que desafia a perspectiva também global de respeito aos direitos humanos que interdita a tortura, os tratamentos desumanos e degradantes, os maus tratos e a pena de morte. Em tal perspectiva também há a vedação peremptória de violação das garantias processuais, como a do juiz natural, do acesso à justiça, da ampla defesa, do contraditório e o da defesa por advogado.
O efeito dessas práticas globais no plano interno dos países pode ser identificado em face da criação de marcos normativos que instauram novas formas de penalização como também por um movimento crescente de modificação do direito penal e do processo penal. 
Assim, a linguagem penal muda de sentido na medida em que após a queda das torres gêmeas a distinção entre o direito penal do tempo de paz ao direito penal do tempo de guerra torna-se tênue e ambígua. [11] Essa mudança de rumo permite que se identifique, também, uma transferência dos serviços civis e do sistema de Justiça para os serviços militares. Resta que, nos Estados Unidos, por exemplo, o poder de deter, de analisar a culpabilidade e de pronunciar as penas é, tout court, transferido para comissões militares, invertendo-se a aplicação do princípio da especialidade que autoriza a atuação da “justiça militar” apenas para processar e julgar crimes praticados por elementos das forças armadas, conforme tem sido entendido pela Comissão de Direitos Humanos da ONU e pela jurisprudência dos tribunais regionais de direitos humanos como a da Corte Interamericana e da Corte Africana. [12]
O que é posto em questão é não só se há ou não exacerbação das respostas institucionalizadas diante das simples ameaças, mas também se tais práticas são legítimas à luz de valores constitucionais, convencionais e universais que protegem a dignidade humana.
Mas resta saber quem são as vítimas destas práticas? Quem seriam os “inimigos combatentes ilegais”? No limite, a resposta pode ser buscada no indivíduo hipermoderno chamado por Robert Castel de “individu par défaut [13] isto é, aquele a quem faltam os recursos necessários para estabilizar o presente e para antecipar o futuro, aquele que quer ocupar um lugar, ser considerado mas, que, no entanto, não realiza tais aspirações. 
A risco de errar, por demasia ou insuficiência, nessa condição estão os imigrantes, os refugiados de toda ordem, os consumidores “falhos” como refere Zygmunt Bauman [14] enfim, todos aqueles que mudam de lugar em busca de oportunidades de trabalho e de realização do mínimo de sua humanidade. Porém, amiúde, não têm encontrado ambiente favorável para a realização de tais objetivos, compondo o grupo que mais tem sido fustigado pelas políticas nacionais, regionais e internacionais anti-imigratórias e antiterror. A humanidade, em face desse desenho, deve temer uma barbárie de dupla face: aquela que deriva da união do interior com o exterior. [15]
 
Jânia Maria Lopes Saldanha - Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.
 
Referências: 
[1]  DELMAS-MARTY, Mireille. Libertés et sûreté dans un monde dangereux. Paris: Seuil, 2010, p. 17.
[2] FOESSEL, Michael. État de vigilance. Critique de la banalité sécuritaire. Paris: Le Bord de L’Eau, 2010, p. 10. Também em: Après la fin du monde. Critique de la raison apocalyptique.Paris: Seuil, 2012.
[3] BROWN, Wendy. Les murs de la séparation et le déclin de la souveraineté étatique. Paris: Les Prairies ordinaires, 2009, p. 21.
[4] A diferença é apontada por Michael Foessel.
[5] BECK, U.Un nuevo mundo feliz. La precariedade del trabajo en la era de la globalización.Barcelona: Paidós, 2000, p. 163-164.
[6] FOESSEL, M. État de vigilance. Critique de la banalité sécuritaire, op. cit., p. 14.
[7] FERRAJOLI, Luigi. Garantismo. Una discusión sobre derecho y democracia. Madri: Editorial Trotta, 2009. Também em: Poderes salvages. La crise de la democracia constitucional. Madrid: Trotta, 2011.
[8] Criou o Comitê contra o terrorismo e exortou todos os Estados que fazem parte da ONU a recusar todas as formas de apoio financeiro aos grupos terroristas e a deixar de proporcionar refúgio seguro, sustento ou apoio a terroristas e a partilhar com outros governos informações sobre qualquer grupo que pratique ou planeje atos terroristas. A Resolução impede a ajuda ativa ou passiva aos terroristas (NAÇÕES UNIDAS, s/d).
[9] Recepcionada no Brasil pelo Decreto 7606 de 17.11.2011.
[10] LAURENS,  Henry. DELMAS-MARTY, Mireille. Terrorismes. Histoire et Droit. Paris: CNRS Editions, 2010, p. 179.
[11] DELMAS-MARTY, Mireille. Libertés et sûreté dans un monde dangereux, op. cit., p. 12 e segs.
[12] GUTIÉRREZ, Juan Carlos. CANTÚ, Silvano. A restrição à jurisdição militar nos sistemas internacionais de proteção de direitos humanos. Sur. Revista Internacional de Direitos Humanos. v. 7. n. 13. Dez. 2010, p. 75-97.
[13] CASTEL Robert. La montée des incertitudes. Travail, Protections statut de l’individu. Paris: Seuil, 2009, p. 434. Significa “indivíduo por falta” cujo contrário é o “indivíduo por excesso” que é a outra marca do mundo contemporâneo, ou seja, aquele que baldado esteja inserido em sociedade, age no seu interesse próprio, exacerbando o individualismo.
[14] BAUMAN, Zygmunt. Vida para o consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[15] MORIN, Edgar. Cultura e Barbárie Europeias. Instituto Piaget. p. 33.

Fonte: http://justificando.com/2014/11/24/constitucionalismo-cosmopolita-entre-muros-visiveis-e-invisiveis/

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