quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A “condenação ao contato” para consolidar os direitos humanos

Por Jânia Maria Lopes Saldanha


A perspicácia sensível de Nietzsche[1]identificou o Século XIX como a “era da comparação”. Ele afirmou que a interpenetração de homens e a polifonia de esforços para se colocar em contato representava verdadeira oposição ao isolamento e ao fechamento das sociedade nacionais.

Exercer o comparatismo e adotar o ponto de vista do “outro” traduz uma experiência singular, ocasião em que seu autor universaliza-se na medida em que se abre ao aprendizado de encontrar respostas em ordenamento jurídico que não é o seu. E o “contato” pode derivar da experiência do diálogo.

No mundo do direito, tal diálogo pode ser identificado nas conversações e citações jurisprudenciais recíprocas que são praticadas entre os mais diversos sistemas de justiça nacionais e não nacionais, como também entre esses sistemas e outros atores que atuam no vasto cenário das relações internacionais. A permeabilidade ao “exterior” é, sem dúvida, resultado das trocas globais e da facilitação das comunicações.

Não é novidade, pois, que os processos judiciais que tramitam em jurisdições nacionais ou não nacionais apresentam, cada vez mais acentuadamente, questões geralmente complexas e de repercussão ampla, amiúde, para além das fronteiras nacionais e que reivindicam a experiência do diálogo.

A referência pelos sistemas de justiça a normas e a decisões não nacionais – regionais, supranacionais e internacionais -, torna-se comum entre as práticas judiciais. Consistem, segundo Marcelo Neves, em “comunicações transversais”[2] entre a jurisdição nacional e a não nacional que conduzem necessariamente à atitude de cooperação e ao exercício de uma “fertilização cruzada constitucional”[3] – e também convencional -. Essa cooperação contribui enormemente para a construção de uma jurisprudência global em matéria de direitos humanos dotada de autoridade persuasiva, como explica a distinta doutrina da judicial comity[4].

Essa influência recíproca e transversal de sistemas e culturas jurídicas entre si e que interfere no conteúdo das decisões judiciais, deságua em um papel relativamente novo exercido pelos juízes, fruto de duas vertentes: a do pluralismo jurídico e a da interdependência entre direitos e sistemas de justiça.

Da atuação da CIDH – Corte Interamericana de Direitos Humanos -, que compõe o sistema mais amplo de proteção aos direitos humanos na América Latina, podem ser extraídos elementos que comprovam o exercício desses diálogos destinados à harmonização de interpretação dos marcos normativos de direitos humanos. Bem se vê que a atualidade de Nietzsche é indepassável.

Com efeito, no ano de 2011 os quatro Países fundadores do Mercosul – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – apresentaram junto a CIDH uma consulta, por meio do instrumento jurídico-processual denominado de Opinião Consultiva, para que esse Tribunal precisasse quais seriam as medidas adequadas para tratar, no plano interno, as questões emergentes da situação das crianças migrantes, bem como a de seus pais.

No mês de agosto passado a CIDH julgou a Opinião Consultiva nº 21/14[5]. Nessa ocasião, ela precisou que os Estados solicitantes devem: 1) adotar medidas internas de proteção considerando o ordenamento interno mas também aquelas previstas em tratados ou outros instrumentos internacionais; 2) proteger e buscar o desenvolvimento integral das crianças independentemente de sua nacionalidade ou condição migratória; 3) avaliar as condições específicas de crianças que requeiram proteção internacional; 4) garantir o acesso à justiça por meio do devido processo, em processos judiciais e administrativos; 5) permitir que tais garantias estejam presentes em todo o processo migratório; 6) evitar privar as crianças de liberdade para acautelar os fins do processo migratório nem fundamentar essa medida pelas condições de ingresso no país; 7) criar alojamentos que respeitem o princípio da separação e o da unidade familiar; 8) evitar devolver, expulsar deportar ou de qualquer forma transferir as crianças migrantes quando sua vida ou integridade física estiverem em risco; 9) estabelecer procedimentos eficientes para poder identificar as situações de asilo e de refúgio; 10) considerar que as obrigações impostas referem-se a um tema complexo e mutável e que deve ser entendido no âmbito do desenvolvimento progressivo do direito internacional dos direitos humanos.

É de ser registrado que esta foi a primeira vez na história da atuação da CIDH que não só um grupo de Estados mas, antes, um grupo que forma um bloco de integração econômica, política e social, apresenta consulta à Corte de Direitos Humanos para buscar precisão sobre a interpretação do direito convencional e internacional sobre direitos humanos, no caso, sobre a proteção dos direitos das crianças migrantes.

De fato, tal atitude demarca duas questões relevantes no âmbito da internacionalização do direito. De um lado, uma atitude de abertura dos próprios Estados integrados e a vontade conjunta de dar tratamento harmônico à mesma matéria. De outro, expressa, primeiro, o seu reconhecimento da jurisdição da CIDH e da importância do diálogo proporcionado pelo uso da opinião consultiva. Trata-se de uma tomada de posição que os compromete com relação ao cumprimento de casos passados e futuros julgados pela Corte de Direitos Humanos.

Segundo, expressa a vontade de reunir numa só decisão, destinada não só aos Países solicitantes, mas a todos os que integram o conjunto de Estados da OEA, a interpretação do Tribunal sobre tema agudo e importante relativo às crianças que, por sua condição, fazem parte do grupo de pessoas em situação de vulnerabilidade.

A decisão, pode-se destacar, marca o primado inderrogável da pessoa humana e de seus direitos humanos. Mas avança no quadro construtivo dos chamados valores comuns da humanidade que se inserem no que se concebe como o “irredutível humano”, compreendido como a base da condição humana em qualquer lugar. Sua violação contra alguém, independente do espaço em que ocorra, será considerada como praticada contra qualquer pessoa humana. Esse, seguramente, é o grande desafio da época atual. Identificar “valores” ou “bens” comuns universais em um contexto em que também as diferenças devem ser preservadas e respeitadas.

Gostaria de chamar a atenção aqui para dois pontos importantes, esperando que o leitor faça uma pausa para pensar sobre a procedência ou não deles. O primeiro relaciona-se ao papel do direito processual para a construção desses valores comuns da humanidade, na medida em que os tribunais de direitos humanos têm sido cada vez mais chamados a decidir sobre questões viscerais que dizem respeito a esses direitos. O segundo, diz respeito à importância não só do exercício do diálogo interjurisdicional, quanto também do diálogo praticado entre os tribunais de direitos humanos e instituições estatais e não estatais. Como referido, o instrumento jurídico-processual da opinião consultiva emerge como uma das condições de possibilidade desse diálogo no sistema interamericano.

Assim, se de um lado o que há é a internacionalização dos direitos humanos e, de outro, a globalização da economia, é possível perceber a constituição do que se convencionou chamar de ordem mundial representada por uma verdadeira transformação nos contornos estatais e dos institutos clássicos do direito internacional.

Bem se vê, então, que a emergência de redes de interdependências estatais e não estatais provoca a erosão da soberania, coloca em questão o modelo moderno de contrato social e fragiliza o “nacionalismo metodológico” de que tratou Ulrich Beck. Há, desse modo, um processo jurídico em curso que provoca a necessidade não de uma refundação e sim derefundações daquele contrato.

Reconhecer ser possível construir a categoria de bens comuns mundiais para além dos interesses econômicos, então englobando os direitos humanos, é um dos pressupostos para consolidar o direito cosmopolítico e criar consenso em torno de uma comunidade mundial de valores. Desse modo, o sistema de justiça é cada vez mais reivindicado a enfrentar as questões da humanidade por meio da comparação e da “condenação ao contato” por meio do diálogo. É relevante pensar sobre tais questões tomando-se como exemplo a decisão da CIDH na Opinião Consultiva 21/2014.

Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada

[1] NIETZSCHE, F. Humano demasiado humano. São Paulo: Companhia de Bolso, 2005, p. 31
[2] NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 117-118.
[3] SLAUGHTER, Anne-Marie. A new world order. Princeton: Princeton University Press, 2004. p. 69.
[4] Idem. p. 67.
[5] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_21_esp.pdf.

Fonte: http://justificando.com/2014/10/27/condenacao-ao-contato-para-consolidar-os-direitos-humanos/

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