quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Daumier, os tempos e os espaços da justiça no Século XXI

Por Jânia Maria Lopes Saldanha

Origem: http://justificando.com/2014/09/29/daumier-os-tempos-e-os-espacos-da-justica-seculo-xxi/

Esse ensaio inicia convidando o leitor a refletir sobre a justiça brasileira a partir da seguinte pergunta: como compatibilizar o modelo de justiça orientado para a produção quantitativa, adotado para debelar a morosidade e enfrentar o elevado número de demandas, com a exigência democrática de que, substancialmente, as decisões do Poder Judiciário tenham qualidade? E ele termina com uma segunda questão, vinculada à primeira, cujo desdobramento futuro será inevitável, que é a de saber se essa mesma justiça está preparada para dar respostas compatíveis com a problemática das violações de direitos humanos e a necessidade de sua proteção.

O esboço de uma possível resposta ao primeiro questionamento não pode ignorar que as críticas lançadas sobre o sistema de justiça e sobre a atuação de um de seus atores, os juízes, não é prerrogativa do tempo presente. Basta lembrar que no Século XIX, o trabalho iconográfico criativo e crítico que constitui a obra Gens de Justice, de Honoré Daumier,retratou com perspicácia ser a justiça francesa, daquela época, pouco acessível e distante dos jurisdicionados.

Nos últimos cinco anos, pode-se afirmar, os programas e metas estabelecidos pelo CNJ para a qualificação do trabalho do Poder Judiciário do Brasil derivam, em boa medida, da constatação da fragilidade do acesso à justiça, seja pela demora na solução dos processos, seja pelo expressivo número de demandas. Esse quadro institucional dota as imagens da justiça caricaturizadas por Daumier de extrema atualidade.

Não obstante deva ser reconhecido o esforço institucional para reduzir a chamada “crise do judiciário”, é preciso pensar se um sistema de justiça orientado massivamente mais para a elevação da produtividade e para a redução do tempo dos processos e menos para a qualidade do conteúdo de suas decisões, não corre o risco de reduzir-se a ser uma justiça apenas do fluxo, da normalização e da barémisation.

Assim, a concorrência “quantitativa” assume a natureza de um valor a ser seguido e os relatórios mensais que indicam o número de processos baixados, por acordos, por sentenças de mérito ou pela aplicação de filtros impeditivos/extintivos de recursos, entre outros, provam a eficiência dos métodos de normalização adotados. Essa vinculação aos mapas e aos índices de produção é que orienta atualmente – e vincula – a atuação dos atores jurídicos, sobretudo os juízes, cuja progressão na carreira, após a edição da EC/45 de 2004, depende de seus índices de produtividade.

Evidentemente, caros leitores, esse conjunto de transformações pelas quais tem passado o sistema de justiça brasileiro, está inserido num quadro amplo de reformas experimentadas em diversos países ocidentais e que constitui uma “nova forma de governar”, como foi antevisto por Foucault[1] no final da década de 70 do século passado, forma essa que estende seus tentáculos a todos as esferas da sociedade, públicas e privadas e que possui como lema a eficiência.


Com efeito, a sociedade brasileira reivindica respostas mais céleres do sistema de justiça. E todos estamos de acordo que o Poder Judiciário, nas democracias contemporâneas, assumiu e assume um papel fundamental para a efetivação dos direitos. Contudo, um olhar perspicaz não pode desconsiderar que as reivindicações para que a justiça seja mais rápida estão inseridas na “economia da urgência” que qualifica as sociedades contemporâneas.

Artmut Rosa chama a atenção para o fato de que as sociedades modernas são reguladas e dominadas por um regime temporal rigoroso e estrito que não está articulado em termos éticos. Trata-se de uma nova lógica, a da aceleração social que, elevada à condição de um conceito unificador, explica que os indivíduos – e as instituições – são “regidos, dominados e reprimidos”[2] por um regime de tempo em grande parte “invisível, despolitizado e indiscutido”[3]. Não é difícil imaginar que a instituição da cultura da urgência/aceleração muito rapidamente tomou o lugar das preocupações com a qualidade, sem que fosse profundamente problematizada. Essa, na verdade, como também lembra Maria Rita Khel[4] constitui a nova economia do sujeito.

Ora, as novas formas de organização e de administração das instituições públicas, dentre elas o Poder Judiciário, expressam a adoção de processos orientados para atingir finalidades próprias de um tipo específico de aceleração: a aceleração técnica. Ela domina os transportes, as comunicações, a produção e os serviços e coloca a otimização da aceleração das operações como o objetivo maior a ser atingido. É esse aspecto da aceleração que está ao centro da dromologia de Paul Virilio[5], aceleração histórica que passa da revolução dos transportes para a revolução das transmissões. Nesse sentido, é preciso refletir sobre as virtudes e os defeitos de uma justiça cada vez mais acelerada, cujo ritmo é extremamente facilitado pela expansão da adoção das tecnologias de informação e comunicação.

De fato, pode-se perceber que os efeitos da aceleração técnica sobre a realidade são profundamente transformadores. Se o Poder Judiciário tem, de certo modo e até mesmo sob pressão da sociedade, assumido essa performance em nome de resultados em menor tempo, há que ser reconhecido que não é ator isolado, pois é conduta praticada no âmbito maior de um regime espaço-temporal que domina as sociedades contemporâneas. O problema é que o tempo, cada vez mais, é colocado pelos homens como um elemento que comprime e, amiúde, fragiliza o espaço. Para o que aqui nos interessa, tal compressão transforma marcadamente a imagem – e o simbólico – do Poder Judiciário, os espaços das audiências, os rituais dos tribunais, o encontro e o diálogo dos atores.

A centralidade que hoje assumem a aceleração das respostas e a redução dos volumes de processos em menor tempo, efetivamente, toma o lugar das preocupações com a qualidade das respostas da justiça. Esse déficit, seguramente, está associado a esse fenômeno sutil da perda de importância do espaço que, segundo Rosa[6], orienta o mundo moderno tardio. Como consequência, as atividades e os desenvolvimentos não são mais localizados. Lugares como os das instituições públicas, cujos exemplos vão das universidades aos sistemas de justiça, bem como os dos atores privados, como os das empresas, tendem a se tornar não lugares, isto é, “lugares sem história, sem identidade e sem relação.”[7]

A quantificação, se assumida como o valor central do funcionamento do Poder Judiciário, não só toma o lugar da indispensável qualidade das decisões, quanto pode expressar que a aceleração – entendida como julgar mais em menor tempo – toma a forma de um novo totalitarismo que provoca novas formas de alienação humana na medida em que a palavra de ordem é a eficiência, o valor magno do sistema econômico.

Chama a atenção que em seu discurso de posse como presidente do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Ricardo Lewandowski, também hoje presidente do CNJ, destacou inúmeros problemas ainda enfrentados pelo Poder Judiciário e diversas medidas que devem ser adotadas ou aprimoradas para reduzi-los. Entretanto, para o Ministro, embora deva o sistema judiciário sofisticar sua atuação para melhorar o acesso à justiça, reduzir o tempo e o volume de processos e, malgrado a alta carga de trabalho que os juízes brasileiros enfrentam diariamente, esses devem em sua atividade interpretativa cuidar de aplicar o direito convencional no que concerne ao respeito aos direitos humanos.

Entre as propostas de mudança do Poder Judiciário, alertou o Ministro para a necessidade de que a justiça brasileira, a par do protagonismo interno que já existe e que se intensificou após a Constituição de 1988, assuma um protagonismo externo. Para tanto, ressaltou que os magistrados devem, com mais habitualidade, conhecer e aplicar “os institutos do direito comunitário e do direito internacional, à semelhança do que ocorre no Velho Continente, onde os juízes foram e continuam sendo os grandes responsáveis pela integração europeia, sobretudo ao garantirem a igualdade de direitos aos seus cidadãos.”[8]

É certo, esse é um desafio que se apresenta ao Poder Judiciário e que reclama, não apenas cuidado com a quantidade decisória mas, sobretudo, com a qualidade das decisões que devem ser adequadas ao regime convencional de direitos humanos. Não se trata então, apenas da rendição à lógica acelerada do tempo dos processos em nome da eficiência e sim da reivindicação de uma nova compreensão das fontes do Direito e do seu espaço de aplicação não mais reduzido aos limites do Estado Nacional.

Esse é um convite para aplicação do “comum”[9] como um princípio político adequado às questões que tratam de direitos humanos e para o exercício dos diálogos transjurisdionais como uma forma de emancipação às reduções quantitativas a que tem sido submetida a justiça.Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.

[1] FOUCAULT, M. Naissance de la biopolitique. Paris: Gallimard, 2004.
[2] ROSA, Artmut. Aliénation et accélération. Paris: Découvert, 2012, p. 8.
[3] Id.
[4] Kehl, Maria Rita: Aceleração e depressão. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=gGjPmVTIiCk
[5] VIRILIO, Paul. Vitesse et politique. Essai de dromologie. Paris: Galilée, 1977.
[6] Id., p. 21
[7] Id. Ibid.
[8] Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=274844. Acesso em 27 de setembro de 2014.
[9] Veja-se: DARDOT, P. LAVAL, C. Commun. Essai sur la révolution au XXI Siècle. Paris: La Découvert, 2014.

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