quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Rindo com Diógenes, pensando com Kant e fazendo uma nova lei de migrações para o Brasil

Por Jânia Maria Lopes Saldanha

Origem: http://justificando.com/2014/10/13/rindo-com-diogenes-pensando-com-kant-e-fazendo-uma-nova-lei-de-migracoes-para-o-brasil/

Num curioso livro denominado Do que riem as pessoas inteligentes[1] Manfred Geier lembrou como Diógenes – o “Cínico”, nascido em Sínope, na costa do mar Negro entre 410 e 400 a.C -, ironizou Platão e Alexandre e o quanto no seu cinismo estaria em jogo uma porção de ironia e de comicidade. Tratando de uma filosofia do riso, Geier[2], invocando reflexão feita por Peter Sloterdijk, pretendeu mostrar que embora Diógenes vivesse em um barril em meio aos cães, vivia, ria e cuidava para que ficasse a impressão de que por trás de tudo o que existia não havia propriamente um desnorteamento, mas sim “uma clara reflexão.”

Há vínculos mais estreitos do que se pode imaginar entre o estranho Diógenes do riso, livre do anseio pela posse de bens materiais, e aquele que dizia não ser a pólis o verdadeiro lugar dos homens, mas sim o mundo, eleito por ele como a verdadeira pátria.

Para Diógenes, a única e verdadeira ordem social encontrava-se somente no universo. Remarca Geier, no entanto, que Diógenes lutava, como cosmopolita, contra as fronteiras dapólis “mas não sentido de uma política mundial globalizante”[3], e sim no sentido de que os indivíduos autônomos deveriam estar “presos” apenas ao cosmos, única ordem na qual cada um poderia ser acolhido.

Assim, das reflexões cosmopolitas de Diógenes, no mundo antigo, até aquelas realizadas por Kant no início da modernidade acerca da possível construção de uma “ordem cosmopolita da hospitalidade”, muito tempo se passou. Mas, de fato, pode-se seguramente dizer que as preocupações com um mundo pautado pelo “comum” e pelo exercício e gozo de direitos, que não conheçam fronteiras, não é um invento dos tempos modernos.

Como referido, Diógenes, rejeitando a pólis, perguntado de onde era, respondeu ser “do cosmos”, inaugurou a manifestação em favor de um ideal internacionalista ou, quiçá, cosmopolita[4]. E Kant, no terceiro artigo definitivo da obra À Paz Perpétua[5], apresentou, em nome do direito de visita, um contundente manifesto contra os processos colonizadores europeus. Para ele o direito cosmopolita garantiria a “hospitalidade universal”. Desse modo, mesmo que contemporaneamente o vocabulário jurídico se enriqueça de novas expressões como globalização, mundialização, internacionalização, entre outras, é sabido que para a compreensão do termo “cosmopolitismo” resta muito a construir e não são poucas as divergências interpretativas e práticas que o termo reúne.

Essa alusão, caro leitor, foi feita para provocar reflexão sobre a importância do Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, apresentado no ano em curso por uma Comissão de Juristas[6] nomeada pelo Ministério da Justiça.

Como é de conhecimento público, os movimentos migratórios consistem em fenômeno global complexo que decorre de inúmeros fatores internos e externos aos Estados. Os migrantes, invariavelmente, fazem parte de um grupo de pessoas submetidas à situação de extrema vulnerabilidade social e jurídica. A vulnerabilidade é resultado do reconhecimento explícito de que os direitos e obrigações não são repartidos de modo igual entre as populações ou entre distintos grupos. Por um lado, essa distinção de tratamento limita o acesso a uma gama de direitos. Por outro, aos integrantes do grupo, há uma ausência ou uma drástica limitação de medidas de proteção para que tenham uma vida digna. A negação dos direitos e de proteção jurídica agrava, como se sabe, a condição de vulnerabilidade e faz muito distante o ideal cosmopolita de Diógenes e de Kant.

Rosmerlin Estupiñan-Silva[7], em memorável texto, diz que existem macro-forças de caráter interno que produzem situações de profunda vulnerabilidade de determinados grupos. Elas decorrem: (a) de desequilíbrios econômicos; (b) dos grandes projetos de desenvolvimento de urbanização e indústria; (c) de derivas políticas em razão da existência de governos ditatoriais, (d) de conflitos armados internos e também da exposição contínua da ameaça aos direitos humanos. Contudo, outros fatores como os de fragilidade psíquica e social são retirados de seu texto. A fragilidade psíquica pode ser identificada nas questões de crianças e adolescentes, nas questões de gênero – como é o caso das mulheres e dos homossexuais – nas questões de saúde – que é o caso das pessoas com algum tipo de deficiência – entre outros. A fragilidade social é constatada na fragilidade dos trabalhadores – em especial dos trabalhadores imigrantes “sem papel” -, aos presos, aos dirigentes de partidos políticos de oposição em democracias ainda frágeis, aos jornalistas, aos defensores de direitos humanos, entre outros[8].

Os migrantes podem ser inseridos numa situação específica de vulnerabilidade, sobretudo quando se encontram, do ponto de vista jurídico das ordens jurídicas dos Estados e atualmente da União Europeia, em condição de ilegalidade. Tal vulnerabilidade os submete a constantes violações dos direitos humanos, especialmente ao direito de acesso à justiça, ao devido processo legal, à moradia, ao trabalho e à saúde. Os Estados latino-americanos, em sua grande maioria, ainda pautam suas políticas migratórias e o tratamento jurídico dos migrantes em leis feitas sob a égide dos regimes autoritários. De fato, tal situação denota que há um profundo descompasso entre, de um lado, o sistema protetivo dos direitos humanos para a América Latina e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, de outro, com o que se faz no âmbito interno dos Estados em relação aos migrantes.

O Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil aponta uma saída luminosa para esse delicado, difícil e tão maltratado tema. Se aprovado, colocará nosso País, mais uma vez, na vanguarda dentre aqueles que souberam enfrentar com lucidez e maturidade temas globais relativos à toda humanidade, mas que ainda são profundamente locais.

Dados os limites deste espaço, gostaria apenas de mencionar ao leitor que o referido Anteprojeto prevê no art. 3º um significativo quadro principiológico protetivo dos direitos humanos dos migrantes. Os princípios jurídicos, por sua transcendentalidade, não nascem de vontades unilaterais, altruístas ou egoístas. Derivam sim dos processos históricos, das reivindicações da comunidade e dos intérpretes do sistema jurídico – constitucional e convencional – ao longo do tempo. Evoluem à medida que a democracia evolui e se consolida. Quem faz a lei deve ter sabedoria para fazer essa interpretação hermenêutica. E quem faz a lei – primeiro quem escreveu e, depois, quem votou por meio de um processo legislativo legítimo – deverá ter consciência de que é autor de um ou de vários dos “capítulos do romance em cadeia” que constitui o Direito, do qual nos falou Dworkin.

Assumir esse compromisso é saber identificar que os escritores precedentes já haviam dado início a uma nova história e que ela deverá ter continuidade. No caso dos direitos dos migrantes e à luta para que sejam reduzidos, senão totalmente eliminados os fatores que provocam sua vulnerabilidade jurídica, política e social, o romance em cadeia começou quando inúmeros textos normativos protetivos dos direitos humanos – e que os alcança – surgiram no cenário internacional, do que são exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, ambas ratificadas e internalizadas por inúmeros Estados.

A previsão de que os direitos humanos dos migrantes devem estar pautados na universalidade, indivisibilidade e interdependência, de que a xenofobia, o racismo e quaisquer outras formas de discriminação sejam repudiadas, de que não haja a criminalização da imigração, de que seja promovida a entrada regular e a regularização dos migrantes já aqui instalados, de que seja garantida sua acolhida humanitária, de que sejam reconhecidos os direitos de reunião familiar, de que haja igualdade de tratamento, de que a inclusão social e laboral e o acesso aos direitos sociais sejam efetivos, bem como lhes sejam assegurada a promoção e a difusão dos direitos, liberdades e garantias em um cenário político e jurídico em que os Estados ajam em cooperação com outros acerca da origem, trânsito e destino dos migrantes, conforma tal quadro principiológico e confirma que a Comissão de juristas que elaborou o Anteprojeto respeitou o compromisso de respeitar a integridade do Direito e de continuar a escrever de forma coerente os capítulos do “romance dos direitos humanos”.

Se aprovado – e espera-se vivamente que seja –, o Anteprojeto de Migrações recolocará o Brasil no caminho democrático neste campo e confirmará, finalmente, que o País foi sensível às demandas para decretar a morte do enferrujado, inconstitucional e inconvencional “Estatuto do estrangeiro”.

Finalmente, a especificidade latino-americana não pode ser desprezada porque, do ponto de vista comparado, pode constituir-se numa importante referência a ser seguida. Diz o artigo 2º da Convenção Americana de Direitos Humanos que se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1º ainda não estiverem garantidos por disposições legislativas ou de outra natureza, “os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.” A jurisprudência da Corte Interamericana tem reforçado ao longo de sua atuação o dever de os Estados adotarem medidas internas para concretização jurídica e fática dos direitos humanos. Esse Tribunal em inúmeros casos já reconheceu a condição de vulnerabilidade dos migrantes. Por ocasião do julgamento da OC – Opinião Consultiva nº 18/03 a CIDH precisou que a condição de indocumentado do migrante o coloca numa condição de fragilidade jurídica acrescida pelo risco de violação dos direitos trabalhistas e do acesso à Justiça[9].

O reconhecimento pela Corte de que há o dever de os Estados cumprirem a Convenção Americana – e de adotarem políticas públicas para a plena efetivação desse marco normativo – nessa e em outras matérias, a transforma em um “sujeito ativo” de “resiliência” que, se bem compreendida, consiste no resultado de “múltiplos processos capazes de interromper trajetórias negativas, como as que decorrem da violação dos direitos humanos”[10].

O Anteprojeto de Lei de Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil demonstra que o Brasil, ao dar esse importante passo para dotar a sociedade brasileira de lei avançada em matéria de proteção aos migrantes, não só foi sensível ao trabalho de resiliência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas também assume a condição de ator de resiliência e atualiza o diálogo atemporal entre o riso de Diógenes e o imperativo cosmopolita kantiano.

Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice, em Paris. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.


[1] GEIER, Manfred. Do que riem as pessoas inteligentes? Uma Pequena filosofia do humor. Rio de Janeiro: Record, 2011.
[2] Ibid., p, 97.
[3] Op. cit., p. 100.
[4] MOLES, J. L. Cosmopolitismo cínico. In: GOULET-CAZÉ, Marie-Odile. BRANHAM, R. Bracht. Os cínicos. O movimento cínico na Antiguidade e o seu legado. São Paulo: Loyola, 2007. p. 121-136.
[5] KANT, I. À Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM, 1975, tradução de 1989. p. 43-44.
[6] Fazem parte da Comissão os seguintes juristas: André de Carvalho Ramos, Aurélio Veiga Rios, Clémerson Merlin Cléve, Deisy de Freitas Lima Ventura, João Guilherme Lima Granja Xavier da Silva, José Luis Bolzan de Morais, Paula Abrão, Pedro de Abreu Dallari, Rossana Rocha Reis, Tarciso Dalmaso Jardim e Vanessa de Oliveira Berner. Disponível em: http://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/10947.pdf
[7] ESTUPIÑAN-SILVA, Rosmerly. La vulneabilité danas la jurisprudence de la Cour Inter-americaine des droits de l’Homme: Esquisse d’une typologie. In: BOURGORGUE-LARSEN, L. La vulnerabilité saisie par les juges em Europe. Paris: Pedone, 2014, p. 98-99.
[8] Id., p. 101-103
[9] Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/index.php/en/advisory-opinions
[10] ESTUPIÑAN-SILVA, Rosmerly. La vulneabilité danas la jurisprudence de la Cour Inter-americaine des droits de l’Homme: Esquisse d’une typologie, op. cit., p. 110.

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