terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Milonga para a liberdade de expressão

Por Jânia Maria Lopes Saldanha e Rym Ghedira


Nos últimos dez dias boa parte das pessoas e das instituições públicas e privadas do mundo centrou a análise e o debate sobre o atentando contra o semanário Charlie Hebdo, em Paris. A primeira das autoras já teve oportunidade de rapidamente manifestar-se tão logo os fatos ocorreram[1]. Sensibilizar-se com o ocorrido, participar dos debates nas redes sociais, deixar vir à fala nossas posições representa exercer o luto por algo que também perdemos enquanto humanos que somos. E falar dessa tragédia não significa que desconhecemos ou somos insensíveis a todas as outras tragédias de que a humanidade foi ou é vítima e contra as quais devemos protestar e lutar veementemente.
O ataque ao Charlie Hebdo e a morte das pessoas representou a morte real para quem se foi e a morte simbólica do direito de expressão considerado em suas mais variadas possibilidades de manifestação. Do ponto de vista pessoal, a morte das vítimas do atentado constituiu uma perda humana irreparável. Irreparabilidade que deriva de todas as mortes violentas que acontecem pelo mundo afora, seja sob a forma de assassinatos, tratamentos desumanos e degradantes, tortura, ou seja, representadas por qualquer forma de discriminação, ofensa, exclusão ao mínimo existencial, etc. Por outro lado, do ponto de vista institucional, o que se viu, foi a tentativa de fragilizar um periódico de comunicação que atua na área específica da crítica política e social praticada pelo exercício do humor.
Vale lembrar aqui de um pequeno texto de Marcelo Gleiser[2] sobre o riso. Mesmo que tantos desde a antiguidade já o tivessem feito, ele repete a pergunta : « Por que rimos? » E responde : « Ninguém sabe. O riso tem uma qualidade universal: todas as culturas têm seus contadores de piadas. E, mesmo que a piada tenha graça só para uma cultura, as pessoas reagem sempre da mesma forma. Não importa se a língua é completamente diferente, se a pessoa é da Mongólia, um aborígene australiano ou um índio tupi, o riso é sempre muito parecido, uma reação física a um estímulo mental. Mas que estímulo mental é esse que nos faz reagir fisicamente de uma forma tão característica? » Alguém pode duvidar que os desenhistas do Charlie Hebdo queriam provocar o riso e não o ódio usando as imagens caricaturizadas dos nossos deuses, dos nossos ídolos e, porque não,  das nossas pequenas e grandes tragédias cotidianas, justamente para driblar o lado sério e penoso da existência humana?
Entretanto, nossa intenção não é aqui discutir esse trágico, triste e lamentável episódio à luz da filosofia, da psicanálise ou da sociologia. Muitos já o fizerem nesta última semana. Tampouco será nossa intenção fazer a análise tomando por referência as teorias liberais ou comunitaristas. Embora concordemos com as procedentes palavras do Prof. Jorge Luiz Souto Maior[3] de que pretender explicar o ocorrido apenas com as lentes do sistema normativo é perigoso porque acarreta a limitação das «análises sobre os valores relevantes à evolução da sociedade aos padrões da ordem jurídica posta », devemos refletir sobre o papel e o lugar do direito para garantir a liberdade de expressão, ainda que essas duas dimensões não sejam iguais em muitos lugares.
Ora, uma das tantas questões que emergiram depois dos atentados terroristas na sede de Charlie Hebdo é justamente: devem existir limites para a liberdade de expressão ? A liberdade de expressão deve ou não ser considerada uma das fortes expressões dos Estados democráticos de direito, quanto também do denominado « jus commune » internacional?
Mesmo que não haja uma única resposta a essas perguntas, é interessante anotar o que dizem os textos internacionais protetivos dos direitos humanos. A primeira referência normativa mais expressiva de proteção à liberdade de expressão é o artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos[4] que diz : « Todo homem tem o direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaiquer meios, independentemente de fronteiras ».
Na Europa o artigo 10 da Convenção para salvaguarda dos direitos do homem e das liberdades fundamentais[5] diz que: “1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de cinematografia ou de televisão a um regime de autorização prévia.” O item 2, essa Convenção tal como a Convenção Americana, prevê deveres e responsabilidades.
Nas Américas, o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos determina  que : « 1. Toda pessoa tem o direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito inclui a liberdade de procurar, receber e difundir informações e idéias de qualquer natureza, sem considerações de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer meio de sua escolha.” E no item 2 prevê que não haverá nenhum tipo de censura prévia podendo, em alguns casos, haver responsabilidade posterior.
Na África, embora notadamente mais tímida, a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos[6], no artigo 9º, 2, prevê: “Toda pessoa tem direito de expressar e difundir suas opiniões de acordo com as leis e regulamentos.”
Como se vê, há um traço comum entre os marcos normativos internacionais citados que é o de justamente atribuir à liberdade de expressão o caráter de direito humano que, como regra, não pode sofrer limites.
No plano do Estados, seria impertinente repetir nesse espaço o amplo rol de Constituições que possuem dispositivo similar ao art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos ou aos artigos da Convenções regionais. Entretanto, a repetição dessas previsões nas Cartas constitucionais evidencia o importante fenômeno da constitucionalização do direito internacional e o compromisso assumido pelos Estados de respeitar tal direito. Não se pode negar, então, que um grupo expressivo da comunidade de Estados faz da liberdade de expressão um direito fundamental.
De fato, devemos prestar atenção. A liberdade de expressão consiste em um elemento estrutural da democracia, uma vez que torna possível a dissidência e o pluralismo. A Corte Interamericana de Direitos Humanos[7], em rumoroso caso que envolveu a religião católica, afirmou que a proteção e promoção de um conceito amplo de liberdade de expressão é a pedra angular da existência de uma sociedade democrática, considerada indispensável para a formação da opinião pública[8]. Gostemos ou não, em resguardo da própria democracia e das diferenças que deve contemplar, é que a liberdade de expressão não é apenas um valor instrumental ou um meio para um fim mais importante, trata-se simplesmente de elemento indissociável dos regimes democráticos. Gostemos ou não, ela apresenta-se como um aspecto inerente da própria noção de liberdade do homem e também de democracia, cujo cerceamento invariavelmente pode constituir em uma maneira, dentre tantas que existem, de dominar o homem e torná-lo submisso às mais variadas expressões de poder.
É cabível pensar, também, que o reconhecimento da legitimidade jurídica da liberdade de expressão e sua importância para a democracia produz-se no âmbito de sociedades maduras para reconhecer as próprias virtudes e defeitos, quanto também as virtudes e defeitos dos outros. A defesa contra ela – a liberdade de expressão – é o seu próprio exercício. Percepção ingênua ? Sim, se ignorarmos as múltiplas dificuldades para o uso simétrico desse direito. Não, se mesmo reconhecendo tais dificuldades, nos mobilizarmos para aprimorá-lo. Nesse sentido, se o quadro normativo citado mostra, por um lado, a visão do mundo ocidental, nem por isso podemos dizer que esse mesmo mundo seria melhor sem ele pois, parece ser comum o reconhecimento de que são uma conquista frente às inúmeras atrocidades que o mundo viveu, especialmente no Século XX.
Uma nota final : A mobilização da comunidade internacional deve estar ao centro das cooperações interestatais na sua luta contra o terrorismo. Hoje nós estamos todos consternados, a humanidade está consternada, devemos lutar contra o ódio e a ignorância. Faz parte da diversidade do mundo constituir a interpretação dos textos ponto discordante entre diferentes saberes, assim como um texto pode ser lido e interpretado de maneira a criar tensões no seio de diferentes comunidades. É justamente aqui que se encontra a real luta que devemos saber reconhecer e enfrentar. Parte da sensível e iluminada canção de Jorge Drexler[9] « Milonga del Moro judío » pode ajudar a entender nossa última afirmação : « Yo soy un moro judio que vive con los cristianos, no sé que Dios es el mío ni cuales son mis hermanos. No sé que Dios es el mío ni quales son mis hermanos »
Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.
Rym Ghedira é Mestre em  Sécurité Internationale Défense et Intelligence Economique (SIDIE), título obtido junto ao Institut du Droit de la Paix et du développement de l’Université de Nice Sophia antipolis. Realiza estágio junto ao IHEJ-Paris.

[1] A Paris de Charlie. Disponível em : http://saudeglobal.org/2015/01/08/a-paris-de-charlie-por-jania-maria-lopes-saldanha/
[2] Sobre o riso. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1008200806.htm
[3] A questão Charlie. Disponível em: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/A-questao-Charlie/5/32666
[4] Disponível em: http://www.un.org/en/documents/udhr/
[5] Disponível em: http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_FRA.pdf
[6] Disponível em: http://www.achpr.org/fr/instruments/achpr/
[7]Veja-se o caso “A última tentação de Cristo”. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_73_esp.doc
[8] BASTERRA, Marcela I. Derecho a la información vs. Derecho a la intimidad. 1ª ed. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2012.
[9] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=myVi6pVYYb8

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