terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

“Timbuktu” é lá ou aqui? O sistema de justiça e a federalização dos crimes contra os direitos humanos

Por Jânia Maria Lopes Saldanha


Neste último final de semana assisti ao filme “Timbuktu” dirigido pelo cineasta mauritanês Abderrahmane Sissako e que concorre ao Oscar de melhor filme estrangeiro. É sempre surpreendente como a verve talentosa de algumas pessoas consegue dizer muito com pouco. Esse é o caso. O filme retrata o drama recente vivido pela população da região do Mali que dá nome ao filme e que desde 1988 compõe a lista do patrimônio cultural protegido pela Unesco.
Sissako, sem música e sem muitas palavras, faz a denúncia incontornável da chegada de um grupo de jiadistas – fundamentalistas religiosos armados -, que tomaram o poder naquela região e impuseram à população local sua própria lei religiosa por meio de humilhações, violência e morte cotidianas, cruelmente ilustradas pela lapidação de um homem e de uma mulher não casados “legalmente” e pela pena de morte imposta a Kildane, um pastor que não teve direito de defesa e tampouco de produzir provas no processo. Em 2012 a imprensa internacional deu visibilidade à tragédia vivida pela população de Mali o que repercutiu positivamente em ajuda política e humanitária.
Ao primeiro olhar, as barbáries “humanizadas”, pois os atos são praticados em nome de Deus, parecem realmente inofensivas.  Entretanto, o processo de controle do governo e de suas instituições ao argumento da necessidade da prevalência da religião que, no caso de Timbuktu ocorreu de forma radical, ostensiva e rápida, ocorre hoje em muitas partes do mundo. Às vezes o processo transcorre lentamente, mas não de forma menos insidiosa e violenta.
Cuidadas as diferenças, é interessante analisar – e anotar – o que há de comum ou não entre os que tomam o poder por motivos religiosos e em nome dele cometem crimes contra populações civis indefesas e aqueles outros que os praticam, contra vítimas de igual natureza, em nome da democracia e da “segurança”, investidos do poder e do aparato estatal, mas que do mesmo modo infligem humilhação, violência e “pena de morte” sem devido processo legal, sem direito de defesa e sem prova. Essas duas práticas não são estranhas ao mundo em que vivemos, assim como não é incomum a fragilidade do Estado em debelar tais “assaltos” ao poder. É justamente essa fragilidade que poderá dar vazão à cooperação internacional ou à cooperação interna com vistas e debelar as causas da violência.
A obra de arte conduziu-me a refletir sobre a recente decisão da Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça  que, no dia 10 de dezembro passado, no IDC – Incidente de Deslocamento de Competência nº 3, deferiu pedido do Procurador Geral da República para que fosse deslocada a competência para a Justiça Federal de dois inquéritos policiais e um procedimento inquisitivo envolvendo policiais acusados de cometer graves violações aos direitos humanos no Estado de Goiás pelo desaparecimento de Célio Roberto, Pedro Nunes da Silva e Cleiton Rodrigues e pela acusação de prática de tortura contra Michel Rodrigues da Silva.
O IDC está previsto no artigo 109, § 5º, da Constituição Federal e faz parte do conjunto de reformas do Poder Judiciário instituídas pela Emenda Constitucional nº 45/2004.  Esse dispositivo diz que “Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal”.
No caso concreto, o Ministro Relator Jorge Mussi[1] destacou a possibilidade de federalização dos crimes “como meio de reparo à suposta fragilidade das instituições”.  Como se vê, a Constituição da República estabelece dois requisitos para a federalização de crimes: a) quando houver grave violação de direitos humanos e; b) para assegurar o cumprimento de tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil seja parte.
No IDC 3 foi deferida[2] a participação processual do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil na condição de amicus curiae. A petição apresentada destacou que todos os casos envolvendo violação de direitos humanos no Estado de Goiás e que foram relatados ao Procurador Geral da República tinham uma característica comum: a falta de acesso à justiça, uma vez que inúmeros casos sequer tiveram instauração de inquérito policial ou, se tiveram, incidentes processuais variados impediram ou dificultaram a responsabilização dos culpados.
De fato, o caso demonstra a violação de inúmeros direitos humanos, dentre eles o do acesso à justiça. A petição relata que o então CDDPH – Conselho de Direitos da Pessoa Humana – havia sido oficialmente informado pela Presidência da República de que em 92% das denúncias apresentadas contra o Brasil perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos, uma das alegações é a denegação de acesso à justiça.
Em nome do princípio federativo a Terceira Seção do STJ registrou a excepcionalidade do deferimento do IDC. Sem dúvida, a Constituição Federal apresenta a estrutura do sistema de justiça brasileiro e é sabido que se trata de sistema composto de instituições estaduais e federais. As manifestações do Ministério Público estadual de Goiás, no caso em comento, chamam a atenção para a sua existência.
Contudo, em um mundo em que internacionalização das relações humanas trouxe como consequência o contato entre diferentes sistemas jurídicos, e os códigos culturais, embora se mantenham, já não podem renunciar, tampouco ignorar, a permeabilidade ao exterior, o direito interno sofre o influxo do direito internacional. Como essa é uma via de mão dupla, o internacional também recebe a influência do nacional. Assim, no campo do direito constitucional um duplo processo emerge, o da constitucionalização do direito internacional e o da internacionalização[3] do direito constitucional. Esses movimentos circulares de abertura recíproca que colocam sob interrogação os limites impostos pelas fronteiras nacionais bem como a propalada autonomia do direito internacional, conduzem, inevitavelmente, ao reconhecimento de que o nacional não se sustém sozinho, quanto parece “ser nacional o futuro do direito internacional”[4] diante da sua influência sobre as ordens nacionais. O campo dos direitos humanos e sua necessidade de proteção é o que mais retrata a superação dessas fronteiras e o que exige das instituições nacionais atitudes radicais para a efetivação de sua proteção, sob pena de responsabilidade internacional dos Estados.
Mesmo que à míngua de um marco normativo regulamentador, já anteriormente destacado pela Ministra Laurita Vaz na oportunidade em que decidiu a ADC nº 2, não era mesmo possível outro caminho que não o do deslocamento da competência, ante a presença dos requisitos constitucionais para tanto, ou seja, a grave violação de direitos humanos e a fragilidade das instituições do Estado de Goiás em investigar, processar e julgar os crimes praticados, o que denota falta de cumprimento das responsabilidades internacionais assumidas pelo Brasil. É bom referir ao público leitor que o Relator da ADC 3 tomou o cuidado de determinar fosse colhida prova no referido incidente sobre a incapacidade do Estado goiano em processar e responsabilizar os reputados autores dos crimes, agentes públicos do próprio Estado de Goiás.
Deve ser destacado que o compromisso convencional assumido pelo Estado brasileiro em favor da previsão, proteção e defesa dos direitos humanos, bem como pela responsabilização dos responsáveis pela violação existe em um quadro de cooperação internacional imposta pela internacionalização desses direitos quanto pela sua violação para além dos espaços nacionais. Ao criar o IDC para federalizar os crimes contra os direitos humanos, desde que presentes os requisitos constitucionais, o legislador brasileiro não pretendeu violar competências dos Estados-membros ou fragilizar suas instituições.  A mesma lógica existente no plano internacional, orientada pela universalização dos direitos humanos e pela necessidade de sua proteção prevalece no plano interno. Com isso, os órgãos federais serão chamados a agir ante a necessidade de cooperação com as instituições estaduais fragilizadas em sua atuação por razões diversas sejam estruturais, sejam funcionais.
É necessário voltar ao início. Tanto nas ações dos fundamentalistas religiosas em Timbuktu, quanto nas dos agentes de segurança pública acusados da prática dos crimes contra os direitos humanos – tortura, desaparecimento e homicídio – de vítimas civis, o que se percebe, por um lado, são ações cujos efeitos repercutem para além das fronteiras locais e nacionais. Por outro lado, tais ações têm em comum o exercício ilegítimo, ilegal e arbitrário do poder político, ora exercido – e confundido – em nome do poder religioso, ora exercido em nome da garantia da “ordem” e da “segurança” eleitos como valores democráticos.
A violação do acesso à justiça – ou ao “recurso efetivo” – às vítimas de violações de direitos humanos ou aos seus familiares, como é sabido, é impedida pelo texto da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Desse modo, dada a vinculação de todos os agentes dos sistemas de justiça nacionais à coerência e integridade do direito convencional em matéria de direitos humanos, a Corte Interamericana destaca o dever de os Estados respeitarem integralmente o Pacto de San Jose da Costa Rica quando os direitos em jogo são tão fundamentais que sua restrição ou privação afeta os princípios mínimos de respeito à dignidade humana”[5].
A essencialidade e fundamentalidade dos direitos humanos reiteradamente reconhecida e reafirmada pela Corte nega, no entanto, o reconhecimento de que os Estados podem ser discricionários, porquanto os vincula a dotar esses direitos de substancialidade alinhada à compreensão que deles é feita pela comunidade de intérpretes. Por essa razão e para evitar a responsabilidade internacional do Brasil é que a federalização dos crimes fazia-se necessária. Presentes os requisitos constitucionais e convencionais, a integridade do direito não deixaria mesmo outro caminho decisório ao STJ.
Um último registro. A decisão do STJ no IDC nº 3 faz com que pensemos nas transformações do papel dos Tribunais – sejam tribunais “superiores”, “constitucionais” ou “internacionais de direitos humanos” (em seu sentido amplo) – no contexto do processo dinâmico e evolutivo da internacionalização dos direitos humanos. Seguramente esse processo não se contenta em incluir um interlocutor novo para os juízes, ou seja, o “auditório universal” de que já falara Chäim Perelman. Ele coloca em causa, também, os fundamentos jurídicos e culturais sobre o quais os sistemas de justiça tradicionalmente foram construídos. A intervenção do Conselho Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, que é membro do hoje CNDH – Conselho Nacional de Direitos Humanos, na condição de amicus curiae, mesmo à míngua de previsão legal, mas justificada em nome da natureza analógica do direito, revela não só a abertura  do Tribunal Superior ao diálogo com a sociedade quanto a necessidade de contato para construir democraticamente suas decisões. Sem dúvida, representada pelo Conselho Federal da OAB, essa é uma vitória da sociedade.
Se infelizmente é possível dizer que a violência praticada em Timbuktu e em Goiás pode ser “qualquer lugar”[6], é preciso acreditar que pela via do processo democrático – ainda que não seja a única – e pela cooperação, seja possível caminhar para a garantia de efetividade dos direitos humanos.
Jânia Maria Lopes Saldanha é Doutora em Direito. Realiza estudos de pós-doutorado junto ao IHEJ – Institut des Hautes Études sur la Justice quanto também junto à Université Sorbonne Paris II – Panthéon-Assas. Bolsista CAPES Proc-Bex 2417146. Professora Associada do PPG em Direito da UFSM. Advogada.

[1] Disponível em: http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/sala_de_noticias/noticias/ultimas/STJ-desloca-compet%C3%AAncia-para-a-Justi%C3%A7a-Federal-de-crimes-graves-contra-direitos-humanos-cometidos-em-Goi%C3%A1s. Acesso em 21 de dezembro de 2014.
[2] Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=MON&sequencial=31303781&num_registro=201301380690&data=20130919&tipo=0&formato=PDF
[3] Sobre o tema da internacionalização do direito ver DELMAS-MARTY, Mireille,  Études juridiques comparatives et internationalisation du droit, Paris: Collège de France, 2003.
[4] Slaughter, Anne-Marie e Burke-White, William, “The future of International Law is Domestic (or, The European Way of Law)”, In: Harvard International Law Journal, Vol. 47, Number 2, pp. 327-352, 2006. 5 Se esse futuro “nacional” do direito internacional deriva da necessidade de os Estados afinarem suas leis internas com os ditames daquele, sobretudo quando se tratar de direitos humanos, também é no campo das políticas internas que o fenômeno desabrochará. Nesse sentido, o futuro nacional do direito internacional dependerá de sua habilidade de influenciar, reforçar e servir de base às ações dos atores estatais e às políticas internas. Como imaginam Slaughter e Burke-White, as regras internacionais e
[5] Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Opinión Consultiva OC-18/03: Condición Jurídica y Derechos De Los Migrantes Indocumentados, 2003, p.64.
[6] Disponível em: www1.folha.uol.com.br/…/1224785-timbuktu-pode-ser-qualquer-lugar.s…

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